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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

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CATARSES 1️⃣6️⃣

“Colored” e “olhos em bico” foram duas expressões que aprendi em 1966, por altura do histórico Eusébio versus Coreia do Norte. Eram usadas nos jornais que me ensinaram a ler, sobretudo o Diário Popular, como compreensíveis e lógicas, carinhosas até, sem vislumbre de xenofobia ou ódio. Era o “velho normal”.

Dos coreanos, dizia-se meio a brincar, meio a sério, que eram todos iguais, que todos se chamavam Park qualquer coisa, que talvez tivessem substituído os onze da primeira parte por outros onze ao intervalo e que podia ter sido isso, não a sua qualidade atlética nem o efeito surpresa, a provocar a eliminação prematura da poderosa Itália. Quando a “equipa da Disney”, como lhe chamou Otto Glória pela comicidade dos passinhos de corrida, vencia Portugal por 3-0 aos 25 minutos de jogo, esses eram os comentários que ouvia à minha volta: “olhem como eles correm, parece que são mais que os nossos e ao intervalo ainda vão trocá-los por outros iguais, isto não devia ser permitido!”

Mas a fé em Eusébio, aquele ‘sprint’ com bola pelo lado esquerdo até ser derrubado dentro da área, a frieza a marcar os penaltis, a tranquilidade corajosa, o cavalheirismo na vitória, a liderança natural e a classe insuperável tudo dissolveram, como uma barrela ao preconceito. A maior reviravolta da história dos campeonatos do Mundo, um recorde irrepetível!

Depois desse jogo, a desconfiança pela batota dos coreanos, que seriam cobaias do experimentalismo biológico dos druidas da RDA, deu espaço à soberba pelo triunfo de Eusébio, um pioneiro do mediatismo universal e que, verdadeiramente, foi o primeiro negro europeu a brilhar num Mundial, “chocando” os media de Inglaterra, cuja selecção só veio a ter o seu primeiro jogador de cor, Vivian Anderson, uns bons 14 anos mais tarde. 

“Colored” ainda foi uma expressão com que lidei, nos anos 80, na prosa de grandes mestres do jornalismo desportivo, como sinónimo de africano. Embora nunca mais associada a Eusébio, cujas proezas lhe valeram uma subida no elevador social na mesma medida em que o orgulho português em ser a primeira seleção “africana” a disputar um Mundial, também terá contribuído para aligeirar a imagem de um país colonialista aos olhos da Europa.

Acabou por sair do “futebolês” contemporâneo, ao contrário dos tais “olhos em bico” que continuam a piscar pejorativamente com frequência em textos impressos e oráculos de televisão, considerados discriminatórios pelos asiáticos e agora denunciados energicamente, como aconteceu há pouco tempo na China com anúncios de poderosas multinacionais. 

Neste arco da vida da seleção de Portugal, de 1966 a 2022, da Coreia do Norte em que todos se chamavam Park e corriam como os bonecos da Disney, à Coreia do Sul de Paulo Bento tacticamente europeizada, nestes 56 anos que podem ser o tempo que demora a conquistar um campeonato do Mundo, temos testemunhado o progresso do humanismo e da natureza inclusiva do futebol, a única modalidade que se pratica em todos os países, apesar do conservadorismo retrógrado da FIFA.

O mundo mudou muito em 56 anos, é tão indecoro comparar formas de expressão outrora correntes que a política “woke” tornou incorrectas, como “recordes” futebolísticos em contextos competitivos absolutamente diferentes.

Afinal, eles são só pessoas, coreanos como nós. 

E Eusébio foi só uma pessoa, português como nós, filho de Dona Elisa do bairro da Mafalala, que marcou 9 golos num único campeonato do Mundo - um registo imbatível à escala nacional, porque o autêntico recorde de golos (13) pertence ao francês Juste Fontaine, outro africano, de Marrocos, que também nunca poderá ser batido.

Quis o capricho do calendário que o nono golo de Cristiano Ronaldo em campeonatos do Mundo possa acontecer frente a novos coreanos (do Sul), sem a pressão da qualificação, assim o cabeleireiro da FEMACOSA lhe aumente o volume piloso para um “fluffy hair” que não deixe passar mais cruzamentos de Bruno Fernandes. 

Mas o verdadeiro recorde que é preciso bater, o único que está em jogo neste Mundial do Catar, de forma a evitar que Cristiano Ronaldo acabe a enfileirar na galeria de Eusébio, Cruyff, Zico e Platini, gigantes que não conseguiram erguer a Taça do Mundo, é o 3.º lugar de 1966, conquistado graças a uma vitória cheia de golos sobre a Coreia (do Norte). 

Bate lá este recorde, Cristiano! Tu bates bem…