O novo Borda d’Água
HISTÓRIAS SEM INTERESSE NENHUM (4)
Segunda-feira de manhã, na televisão, pivôs anunciam com entoação de quem descobriu a pólvora que os produtos IVA Zero serão Frutas, Legumes, Pão, Laticínios, Ovos e Azeite, Massas e Arroz, Peixe gordo e Carne de Frango e de Porco. Para não correrem o risco de serem desmentidos, citam Luis Marques Mendes ou Paulo Portas, os Comentadores Oficiais da Nação (CON), espécie de Especuladores autorizados e encartados.
Para um ex-jornalista primário, habituado a escarafunchar informação credível e a tentar esgotar qualquer hipótese de erro, resulta em semanal reforço de rejeição este novo processo “informativo” que consiste em legitimar a invenção benigna - que a realidade acabará por esfumar, confirmada ou desmentida pelos factos - sem recurso a contraditório, fontes reconhecidas ou testes de credibilidade.
Quando procuram explicações para a rejeição dos leitores e espectadores e para a queda das vendas e das audiências para níveis residuais, os gurus da informação ignoram sistematicamente esta vertente perversa dos conteúdos gerados nas centrais de comunicação, onde se fabricam presidentes, da República às Juntas de Freguesia, passando pelos clubes de futebol.
Os jornalistas perderam o acesso directo às cozinhas do poder e alimentam-se agora das migalhas que caem da mesa dos CON de ocasião - também implantados nas áreas do futebol, da economia e da geopolítica -, ditando agendas de sementeira de dúvidas e de plantação de polémicas como quem publica um Borda d´Água de costumes.
Como é que demorou uma semana, até às conversas em família dos domingos à noite, para se “revelar” que os produtos sem IVA iriam ser Frutas, Legumes, Pão, Laticínios, Ovos e Azeite, Massas e Arroz, Peixe gordo e Carne de Frango e Porco?
Como é que os assobios ao João Mário derivaram para uma discussão estéril, quase imoral, sobre amor e desamor pela selecção, quando o que estava em causa era apenas a insensibilidade inesperada de um treinador estrangeiro recém-chegado ao país das nações clubísticas?
Lembro-me do momento e do local onde nasceu este culto da pregação do correcto e do cancelamento do escrutínio, de como a falta do pãozinho noticioso deu lugar ao comentário “gourmet”.
Foi numa das torres das Amoreiras, onde o Fernando Correia, o José Manuel Freitas, um sócio do FC Porto e eu esperávamos que vagasse o estúdio de rádio para gravarmos o primeiro programa com adeptos de clubes, quando de lá de dentro saiu o Professor, acabado de atribuir as suas primeiras notas semanais a políticos e simpatizantes.
Emídio Rangel e os seus adjuntos trocavam sorrisos como se tivessem, finalmente, encontrado o filão do ouro no seu persistente garimpo por uma TSF inovadora e influente: “Muito bom, o homem é muito bom”, repetia o Carlos Andrade, depois das despedidas ao então Professor de Direito e precursor dos “influencers” políticos da era antes da internet, Marcelo Rebelo de Sousa.
Estavam reinventados, à escala mediática, os “comentários” de alcance profético, sobre a razão política, a ética financeira, a moral desportiva, a qualidade literária ou o preço das cebolas.
Nos trinta anos que passaram, os programas de comentadores adoptaram e refinaram o lema do Borda d’Água original de divulgar repertórios úteis, chamados de “conteúdos”, sem os quais não se imagina ser possível sobreviver, como caraterizou Miguel Esteves Cardoso em “A Causa das Coisas”, no lugar das notícias puras e simples.
Se os CON da política proclamam “urbi et orbi” a lista dos produtos de primeira necessidade que nos vão salvar, com a pompa e orgulho de quem está a erradicar a fome; se os CON da bola impõem tendências e condicionam paixões, como quem moraliza o fundamentalismo - tal só é possível porque os editores deixaram de o ser.
Os meios de comunicação dos nossos dias vogam ao sentido da corrente, rezando pela concretização das profecias destes Nostradamus de estúdio, à mercê das etéreas luas e marés do audiovisual.