30 Dez, 2022
Não morreu, é só uma paradinha antes da eternidade

Pelas televisões do mundo inteiro desfilam comentadores falando sobre Pelé. Sinal dos tempos, não ouço ninguém com mais de 60 anos, que podiam ser os que o viram jogar, ao menos no Mundial de 1970. Mas toda a gente o conheceu, toda a gente sabe a história, toda a gente o tinha como seu, que ele chegou a ser uma marca reconhecida por 95 por cento dos humanos, com biografias escritas ou traduzidas em mais de cem línguas. Por isso, tenho muito pouco a acrescentar.
Vamos ler as histórias de almanaque, do pequeno engraxate de Bauru ao heróico Cabo Luis Fernandez da “Fuga para a Vitória” de Hollywood, passando por alguém que não foi além da instrução primária e chegou a ministro de um dos maiores países, as páginas da wikipedia e as buscas do Google vão alimentar até à saturação horas de informação, pormenores e estatísticas.
Quando se fala de “lenda” do futebol, a dimensão é esta: todos conhecem o que nunca viram, quer estejam em Três Corações, quer em Nova York, quer em Lisboa. É um património da memória universal, cósmica.
Eu só vi Pelé jogar nos Mundiais de 1966, onde fez três jogos fracos e acabou lesionado por uma marcação - chamemos-lhe assim - impiedosa de Vicente Lucas, e de 1970, pelo menos nos jogos com a Inglaterra, com o Peru, com o Uruguai e com a Itália. Alguns mais velhos que eu tiveram a felicidade de o ver no estádio da Luz, pelo Santos. Depois foi para os Estados Unidos e virou as costas à Europa, uma decisão absurda para quem tinha o Mundo aos seus pés.
Muito mais tarde, tive a sorte de o conhecer e partilhar duas horas da sua vida real, antes do Mundial de 1990, quando veio a Portugal através de uma marca que o patrocinava desde que emigrara para os Estados Unidos, trazido por um dos atuais gurus do marketing desportivo internacional, Tony Signore. Fui escolhido para fazer uma entrevista conjunta com o meu amigo José Carlos Freitas, não pelos meus méritos mas porque trabalhava então num jornal de referência como o Expresso e preparava-me para a cobertura do campeonato do Mundo em Itália.
Falámos do futebol em geral, da ausência de Portugal desse campeonato marcante, de Eusébio e do Benfica, de Vicente, do poder da selecção brasileira, então com Mozer, Valdo e Ricardo Gomes, da FIFA, do futebol nos Estados Unidos. Uma conversa de bola com o Rei da bola, partilhada nessa semana com os leitores do jornal, de forma efémera, mas alojada na minha memória para sempre, como poucas: o que os jornalistas fazem para obter as informações que passam aos leitores é o seu tesouro, o seu património secreto.
Simbolicamente, este autógrafo imortal é a garantia de que, sendo um dos meus heróis, nunca me deixará. Há dias, descobri que tinha sido ele o inventor da “paradinha” na marcação das grandes penalidades, mais tarde proibida pela FIFA, o que me surpreendeu por nunca ter ouvido falar de um penálti à Pelé, como o “à Panenka” por exemplo. Mas hoje mesmo, horas antes da notícia brutal, chegou-me um video com cerca de 60 anos, que vale muito a pena ver, com o humorista Golias e o igualmente imortal Jô Soares, que também nos deixou neste ano, precisamente sobre o intrincado problema da “paradinha”: https://www.facebook.com/watch/?v=246914453503290
E, meu grande Edson Arantes do Nascimento, é isso aí: você não morreu, foi apenas uma “paradinha”, antes desse último golo para a eternidade.