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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

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Muitos se recordarão daquela tarde do verão de 2004 em que a TVI colocou José Mourinho a comentar o Portugal-Espanha do Europeu. Algures nessa função, o treinador da moda, recém coroado campeão europeu com o FC Porto e contratado pelo Chelsea, usou o termo “basculação” para caracterizar o movimento lateral da equipa enquanto o lateral direito Miguel fazia “pressão vertical”.

Esses comentários foram “unanimemente considerados os melhores da prova e um exemplo de como falar de futebol”, segundo a descrição do Mais Futebol, e assinalaram o desatar da criatividade lexical dos novos agentes do futebol, em particular os jovens treinadores a saírem dos seus cursos, para desespero dos clássicos e empíricos das gerações anteriores. 

Há um futebol falado antes e depois de Mourinho.

O mais interessante - e inexplicável, para mim - foi toda a gente ter percebido o que ele queria dizer. “Basculação” - bem como “vertical” - não tinha, até àquele dia, o significado que ele lhe atribuiu, mas quem estava a ouvir não precisou de ir ao dicionário descodificar a mensagem.

O verbo bascular significava apenas, nos canhenhos do século XX, “virar um recipiente com a boca para baixo fazendo-o girar em torno de um eixo horizontal”. Mas, a partir daquele dia, também passou imagem de uma equipa a descair sobre uma lateral do campo, a inclinar-se com a bola de um lado para o outro, criando espaço, o que os ingénuos de outros tempos descreviam singela e modestamente como “mudança de flanco”. 

Para aumentar a clareza do que antes se designava apenas de jogo “muito puxado para as laterais”, Mourinho serviu-se da imagem do reboque basculante de alguns camiões, que permite levantar uma borda descendo a outra para provocar o deslizamento da carga. Ou do movimento das pontes levadiças, que levantam apenas uma extremidade sobre um ponto fixo no lado oposto.

E, apesar de, 18 anos depois, a palavra “basculação”, bem como a sucedânea “basculamento”, continuar de fora dos dicionários, não existindo oficialmente, toda a gente sabe o que quer dizer. Até algum brasileiro vacilão a terá utilizado já.

Foi com o tom rebuscado de algo que parece científico que Mourinho, paradigma de um académico que desafiava o status quo dos treinadores ex-jogadores dos tempos da bola de cauchu, deu um passo decisivo no sentido de aprimorar o linguajar desportivo.

Durante alguns anos, a expressão mais arrojada que algum treinador tinha conseguido acrescentar ao calão anglófilo de termos adaptados da origem do jogo, tinha sido o “coisas bonitas” de Artur Jorge, que os seus pares imitavam a esmo como se isso lhes emprestasse uma aura de sapiência e conhecimento. Ninguém se arriscava a inventar palavras. 

Ora, a “basculação” de José Mourinho virou o campo da terminologia futebolística, desatando o nó para uma série de neologismos metafóricos, às vezes anacrónicos ou contraditórios, mas suficientemente sonoros, eloquentes e, sobretudo, frequentes através da normalização das transmissões televisivas, entranhando-se nas mentes dos adeptos. Assim se começou a desenvolver o glossário que cria uma nova identidade, ao fazer cair para um flanco a esmagadora maioria dos praticantes de futebolês, deixando um largo espaço ignaro do outro lado para os teimosos puristas da língua.

 

AMANHÃ: C de Construção