As cores do jornalismo
EFAB⚽LAÇÃO (21)
Vejo Jacques Rodrigues a sair do tribunal, o mesmo de sempre no desprezo hostil pelos jornalistas que o esperavam, mandando cumprimentos acintosos ao doutor Balsemão e ao engenheiro Fernandes, os outros magnatas da imprensa, ao mesmo tempo que me surpreendo com a primeira página de A Bola, um dos raros jornais portugueses de fabrico caseiro que conseguiu resistir durante décadas ao assédio das grandes cadeias editoriais.
O último jornal do Bairro Alto decidiu omitir um dos temas do dia, César Boaventura a fazer escorrer azeite das manchetes dos concorrentes, sobre um dos muitos processos judiciais que conspurcam a imagem periférica do Benfica. Mesmo que funcione como sedativo para os corações sobressaltados dos associados, nunca deixará de me surpreender uma tal opção editorial, exatamente 50 anos depois de Sophia escrever “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.
A identidade é o grande mistério indecifrável da relação jornal-leitor, seja pela procura da verdade nua e crua, pela busca do consolo da versão adaptada ou pela compra de uma ilusão esperançosa, como na chamada imprensa cor-de-rosa do vilão Jack Rod. O “Diário”, dos anos 80, ligado ao Partido Comunista, sintetizava este paradigma no slogan “a verdade a que temos direito” - só compra e lê quem não queira despertar para a realidade.
Assim, cada um escolhe a verdade que mais lhe interessa, elege o meio que mais o aproxima da área de conforto, movimentando-se no seu próprio mapa de “isenção”, até à fronteira geralmente delimitada pela “independência” dos outros. Nas sociedades realmente livres e evoluídas, os meios de comunicação identificam interesses, assumem cores e consentem alguns laivos de propaganda, procurando eliminar à nascença qualquer apriorismo ideológico (ou clubístico) para evitar enganar os leitores.
Trabalhei como editor para aqueles três xoguns da imprensa, nas suas áreas desportivas, e ingressei no jornal A Bola no mesmo dia que o seu atual diretor, João Bonzinho, além de ter sido colega do seu diretor-adjunto, José Manuel Delgado. Também trabalhei numa empresa pública, a agência noticiosa dirigida por um futuro “cartilheiro” do Sporting, e numa televisão privada com um diretor-geral que chegou a vice-presidente do Benfica.
Desta minha experiência, sem esquecer o benfiquista Joe Berardo, sem dúvida, o melhor patrão de comunicação social que conheci, guardo inúmeras histórias de pequenas ingerências, sugestões subliminares ou recados descarados, mas sempre achei que eram os jornalistas, em particular os editores, os mais “perigosos” para a verdade desportiva impressa, com cada vez menos força para resistir.
Disse-me muitas vezes o saudoso Aurélio Márcio, companheiro das manhãs na travessa da Queimada e de um inesquecível Mundial de Itália, que “jornalista não tem clube”. Eu ria-me e respondia-lhe: “tem, tem, mas não pode trocar uma notícia por um resultado”.
Ao reduzir a uma breve de última página uma notícia que é manchete dos outros dois jornais desportivos e tem chamada na 1.ª dos dois principais diários, A Bola expressa uma clara opção editorial, indo ao encontro da mais larga e tradicional base de leitores, os benfiquistas, ungindo o sono tranquilo da massa associativa, enquanto a SAD, o clube e os dirigentes que emparceiravam com Luís Filipe Vieira vão conseguindo escapar entre as vírgulas da chuva de processos judiciais.
Vociferava o poderoso J.R. dos tempos da garagem de Queluz de Baixo para o jovem estagiário, meses antes de lhe ficar a dever para sempre dois ordenados: “Esta capa tem pouco verde. Ó Capela*, você trouxe-me pr’aqui um vermelho!”
*António Capela, grande fotógrafo e grande sportinguista, meu “padrinho” profissional.