O Factor G (3.ª parte)
Talvez nenhum campeonato até hoje tenha sido tão influenciado por um jogador como o do 20.° título do Sporting.
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Talvez nenhum campeonato até hoje tenha sido tão influenciado por um jogador como o do 20.° título do Sporting.
A maior crítica que os comentadores franceses fizeram ao treinador Luís Enrique após a derrota do Paris SG em Dortmund foi não ter colocado em jogo no segundo tempo o avançado português Gonçalo Ramos, o mais valioso de todos os jogadores suplentes crónicos desta temporada. Na partida em que a equipa ficou em branco pela primeira vez - na única noite em que tal não “podia” acontecer.
Alejandro Grimaldo deve ser o futebolista mais subvalorizado da atualidade. Ninguém se lembrará dele quando for feita a lista das Bolas de Ouro, mas poucos ou nenhum terá realizado uma época tão perfeita: decisivo em praticamente todos os jogos da caminhada invicta do Bayer Leverkusen, campeão da Alemanha pela primeira vez, finalista da Taça e provável finalista da Liga Europa.
És treinador do Sporting, gozas de enorme popularidade, estás a umas semanas de confirmar um expressivo título de campeão e decides fazer uma viagem inusitada para resolver assuntos pessoais, sendo fotografado no aeroporto e gerando perplexidade, contestação em surdina e dúvidas sobre o futuro da ligação, até então, idílica.
O “vou ali a Londres, já venho” de Rúben Amorim é um “déjà vu” de uma novela que ditou o fim a curto prazo da intensa relação dos sportinguistas com o treinador Malcolm Allison, em 1982, e que, de algum modo, provocou uma crise que deixou o clube na doca seca dos campeonatos até ao fim do século.
Nesta foto do meu baú, Allison é apanhado no aeroporto a explicar-me que se deslocava a Inglaterra para assistir ao casamento da filha e que isso em nada afetaria a concentração da equipa, apesar da reduzida vantagem classificativa sobre os rivais do costume.
Não sei quem chamou os jornalistas a Tires para testemunhar a partida de Amorim, mas quem me fez voar com o Lobo Pimentel Jr. para a Portela, naquele dia, há 42 anos, foi um antigo dirigente leonino, velha raposa do mundo da bola, indignado pela falta de profissionalismo do treinador.
Ao contrário de Amorim, Allison nunca reconheceu o erro, nunca pediu desculpa e demorou poucas semanas já na época seguinte a enredar-se em episódios rocambolescos e banhos de champanhe búlgaro que ditaram o divórcio litigioso com o presidente João Rocha.
Com Oliveira, Manuel Fernandes e Jordão na frente de ataque essa terá sido a melhor equipa do Sporting depois dos 5 Violinos, vencedora de campeonato e Taça, por mérito táctico, dinâmico e motivacional do inglês, mas também do preparo físico de Radisic. A sua saída extemporânea lançou o clube em enorme confusão, entregando a equipa a uma impensável solução técnica de jogador-treinador e a sucessões diretivas mais ditadas pela paixão do que pelo bom senso.
Como será o começo da próxima época de Rúben Amorim no Sporting? Até que ponto esta ideia de “relação aberta” subitamente revelada pelo jovem treinador será suficientemente forte para sustentar o compromisso dos jogadores e dos próprios adeptos?
No futebol como na vida, as vitórias ajudam a consolidar vínculos e cumplicidades, mas quando a desconfiança germina o processo de separação torna-se, quase sempre, inevitável.
Pinto da Costa não me deixa saudades. Foi dos protagonistas mais detestáveis com quem me cruzei nestas quase cinco décadas de vida desportiva, conhecendo-o a metamorfosear-se de ninfa em percevejo, do afável e atencioso para o execrável e perigoso, ao mínimo sinal de discórdia.
Foram 42 anos de hipocrisia e manipulação sustentadas por uma excelente capacidade competitiva que, em sucessivas regenerações desportivas de sucesso, colocaram o clube num patamar elevado, embora sem correspondência em expansão popular e universal.
Mas nunca me revi no “método” que um famoso professor e visionário do nosso futebol, perante a frustração circunstancial das suas ambições em clube rival, um dia decretou “a partir de agora vai ser à Pinto da Costa”. Não entendeu, tal como outros que sofreram a mesma humilhação de ver a ciência ser goleada pela esperteza, que aquilo era obra de autor, inimitável e só possível com alicerces muito profundos no seu reduto social, como um regime totalitário que se perpetua com suas ramificações políticas e tropas de choque.
É por isso quase profético que o grande líder tenha agora caído do seu trono de sonho às mãos de um dos raros delfins que ousaram ir além da ponte da Arrábida conhecer e aprender num mundo onde a força da razão não se submeta à insanidade do poder, sem renegar a indelével matriz.
No mundo que o Porto ainda não tem.
É este, por absurdo, o involuntário legado de Pinto da Costa, ao mesmo tempo que a benevolência da memória ajuda a extirpar a sujidade das impressões digitais que ainda tiram algum brilho às pratas do museu: depois dele pode chegar quem melhor dele fará.
Foto CM