Faz hoje 100 anos que nasceu, em Minde, o meu pai, Hermínio da Silva Capaz Manha, o Hermínio da Troça na piação dos charais do Ninhou, o Hermínio das Malhas Bebé na história da indústria têxtil, o senhor Hermínio, simplesmente.
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O meu “paizinho” - tratamento de íntimo e exclusivo carinho que as novas gerações urbanas substituíram pelo “papá” universal — foi o melhor filho, melhor irmão, melhor marido e melhor pai que conheci. Infelizmente, só me dei conta disso quando senti, como sinto, a falta dele, porque naquele tempo tudo me parecia normal, partia do princípio de que todos os homens “velhos” morriam na sua hora.
Mas, no dia em que faleceu, fui surpreendido por uma frase, dezenas de vezes ouvida naquelas horas de desnorte e sufoco:
“Era tão novo!”
Ele tinha 52 anos e eu olhava dali para o futuro a pensar que os 34 que me faltavam deviam chegar para conquistar o mundo - pareciam-me um tempo infinito e nunca podia imaginar a falta que ele me iria fazer, todos os dias, pela vida fora. Afinal, tudo passou num relâmpago, eu fiz muito pouco do que sonhava e agora, tarde de mais, olho para a imensidão da existência do meu pai, em tão pouco tempo, e não entendo como ele conseguiu.
Como Hermes, o desassossegado Deus Mensageiro dos gregos, foi sempre uma pessoa positiva, sensível, comunicativa e eloquente - a sua assinatura caligráfica, admirável e inimitável, pela Parker personalizada que me coube em herança, era como um auto-retrato de sensibilidade, estilo e carácter.
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Dele herdei, além da caneta “vintage”, não o nome próprio que deu a vários afilhados, mas, sem dúvida, o espírito inquieto e a impaciência para a rotina e a monotonia.
Foi seminarista, estudante, amparo de mãe e irmãos, empregado de escritório, industrial, comerciante, corretor de seguros, músico, jornalista, aguarelista, dirigente associativo, juiz de Nossa Senhora da Assunção, acólito católico e humilde auxiliar voluntário em todos os dias de peregrinações, chovesse pedra ou derretesse o alcatrão no terreiro do Santuário de Fátima.
Só não foi bombeiro, deixando esse campo para o irmão, João Arlindo, o histórico comandante que transformou uma pequena brigada numa das corporações de Voluntários mais importantes da zona centro do país.
Era empreendedor e agregador, se não visionário para aquele tempo, pelo menos adiantado para a sua circunstância: foi o primeiro anunciante regular no Jornal de Minde, como agente dos Seguros Império, desde a fundação em 1955.
Como fabricante de têxteis à saída da segunda Guerra Mundial, a partir de 1948, foi pioneiro na concepção, no marketing e na exportação, na primeira vaga de mais de 60 industriais que Minde veio a ter nas décadas seguintes, e também nas preocupações com o bem-estar social dos seus amigos operários, alguns deles imigrantes no próprio país e entregues à sua tutoria por famílias distantes em busca de uma vida melhor, fundador e dirigente da Associação Pró-Infância, ainda nos anos 50. E esteve na primeira linha do associativismo entre concorrentes por soluções industriais comuns, como as fiações e as tinturarias.
Contrariou a sua natureza desinteresseira ao aventurar-se no comércio com a loja da Nazaré, que, pelo menos, permitiu à família férias grandes e cheias, de ondas, escaldões e bolacha americana, bem como memoráveis e acidentados piqueniques no pinhal do Rei.
Foi um melómano autodidata, sempre com o diapasão no bolso pronto a dar o lamiré para afinar vozes e sons do dia-a-dia, tendo fundado e dirigido desde os anos 50, literalmente, até ao seu último dia de vida, ao ser acometido de um aneurisma cerebral em pleno ensaio semanal, o Grupo Coral que, décadas mais tarde, deu lugar ao Charales Chorus, um dos ex-líbris da nossa terra.
Do gosto pelo teatro, desde os tempos de estudante de contabilidade em Lisboa, retirava sempre o melhor, o prazer e o respeito pela arte cénica, uma espécie de boémia abstémica, com o defeito do gosto pelas touradas, numa tertúlia de amizades para a vida. E, claro, o trabalho pioneiro, dedicado e fundamental, como tesoureiro rigoroso, da Casa do Povo de Minde e do seu excepcional e inovador Cine-Teatro Roque Gameiro, com a melhor teia cenográfica num palco de província, por onde passariam gerações de artistas mindericos e covanos, e onde anos mais tarde vimos, juntos e em êxtase, a “Música no Coração”, o filme que tão bem corporizava os três efes da sua ideologia de vida, de fé, família e fantasia. Quis o destino que fosse precisamente esse palco de récitas, música e dança a passar o testemunho, no seu último ano de vida, para a minha própria família futura.
Do pintor, guardamos as suas réplicas perfeitas das aguarelas delicadas e minuciosas das “Pupilas do Senhor Reitor”, a obra-prima do nosso antepassado mais ilustre, Roque Gameiro, cujo museu, na Amadora, me levou a ver ainda antes de concluir a escola primária. Bem como os carvões, expressão de angústia e raiva, que lhe ajudaram a suportar os dias da ignomínia de uma detenção absurda e injusta numa cela cuja porta foi mantida aberta por carcereiros envergonhados, nos últimos meses do Estado Novo.
“A tristeza oprime, mas o vexame deprime”, disse-me uma vez, com o conselho para valorizar mais os dedos do que os anéis e tentar enfrentar sempre as adversidades com coragem e frontalidade.
Do correspondente, deixou-me sobretudo memórias de prazer pelo trabalho modesto mas importante de contribuir para grandes jornais da capital, A Bola e o Diário Popular, nem que fosse apenas o resultado dos jogos de domingo na região, os quais me ensinou a ver pelos ângulos da curiosidade, da admiração e do desportivismo.
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Era sportinguista, sócio sofredor à distância, teve um cão Serra da Estrela chamado Leão e adorava futebol, respeitando adversários e árbitros, para cujos erros de visão reservava, em surdina e sem ofensa, o implacável juízo de “está a precisar de ir ao Isabelinha”, o oftalmologista de todos os ribatejanos.
Respeitou a minha opção rebelde quando me viu chorar pela perda da Taça dos Campeões Europeus de 1968 - não foi à toa que escolhera para meu padrinho um sócio fervoroso do Benfica, António Vaz Neto, curiosamente também um dos primeiros cronistas regulares do Jornal de Minde.
Amador de fotografia e da sua Kodak de fole, foi amigo de juventude de António Capela, o maior de todos os sportinguistas, que tão importante veio a ser quando me aventurei na profissão que quis abraçar.
As tardes de domingo eram sagradas, fosse com o Vitória, naquela esquina altaneira sobre a bandeirola de canto da baliza norte, onde aprendi que o futebol entende-se melhor quanto mais elevado for o ponto de observação, de associado participativo e generoso, em particular nos anos históricos da construção do parque de jogos.
Ou em romaria ribatejana de Fátima a Benavente, de Abrantes ao Cartaxo, fosse em Torres Novas, à beira do Almonda, por causa do craque Hugo, velho campeão leonino que ali encerrou a carreira; em Tomar, onde vi pela primeira vez jogar o Benfica; em Leiria, por onde passavam as melhores equipas da segunda divisão; ou em Coimbra, onde por ocasião de um Académica-Sporting, em plena crise estudantil, rebolámos na calçada do Calhabé à frente dos cavalos da GNR.
Hoje apercebo-me que viveu a vida numa aflição, após também ter ficado órfão no final da adolescência, sempre a alta velocidade e sem descanso, como se soubesse que o destino lhe tinha marcado uma despedida prematura, sem direito a ver nascer os oito netos que adoraria.
“Era tão novo!”
E agora, cem anos passados sobre a sua vinda ao mundo naquela garganta onde se fundiam as brisas frescas do planalto airoso com o odor às lamparinas de azeite dos pastores do maciço calcário, as minhas inspiradoras serras de Aire e dos Candeeiros, surpreendo-me pela bondade da sua natureza que exprimia sem vacilar, fosse por quem fosse - uma santa ingenuidade que eu nunca tive, mas da qual tentei assimilar a tolerância incondicional, pelas opções religiosas, políticas, sociais ou desportivas de cada um.
Obrigado por tudo, querido paizinho.