Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

25 Jul, 2023

A Wagner do futebol

EFAB⚽LAÇÃO (43)

mbappe.jpeg

Se o futebol fosse uma guerra, os “fundos” da Arábia Saudita seriam a Wagner, a “empresa” de mercenários que ameaça dinamitar a paz internacional, situando-se entre o totalitarismo dos clubes e a liberdade condicionada dos jogadores, escarnecendo da ONU da bola, uma FIFA forte com os fracos e alinhada com os poderosos.

Tal como no mundo do negócio das armas e da escravidão dos povos, a Wagner saudita começou por infiltrar-se onde houvesse vazios de poder por fragilidade económica, adquirindo sucessivas posições em clubes e ligas europeias, transformados numa espécie de Donbass futebolístico, com estatuto de falsa autonomia, de maneira a tornar a indústria global dependente das diretivas e investimentos da casa Al-Saud.

Em segunda fase, lança ataques sistemáticos e corrosivos a partir da base saudita, com o aval do ditador real, através da contratação obscena de jogadores que, todos somados, podem no futuro representar uma importante parcela afectiva de talento europeu descartável. 

A Arábia Saudita subsidia a constituição deste exército mercenário que funciona como uma máquina de reciclagem de excedentários, provocando alguns danos colaterais, nomeadamente a perda de sossego de dirigentes, treinadores e jogadores, que se deitam, na Europa, a rezar que na madrugada seguinte lhes caia em cima uma bomba contratual. 

Os jogadores em fim de carreira, como Ronaldo ou Benzema, são as armas convencionais desta operação especial. Mas foi a ameaça atómica da ogiva Mbappé, de ultimíssima geração, que deu a este movimento o peso terrífico de que poderia não ficar pedra sobre pedra, como nos sonhos húmidos do Emir do Kremlin com as centrais nucleares ucranianas, se o próprio Kylian não fosse o único adulto na sala de comando, dando ao futebol uma vitória demolidora na batalha de Paris.

“Saudi footballship, go fuck yourself” - terá dito o francês, esticando o dedo do meio à proposta indecente congeminada na respetiva Ilha das Cobras entre os fundos da Arábia e da sua Bielorrússia, o Catar St. Germain.

Qual invasão da Ucrânia pelos terroristas russos, este ataque da Wagner saudita não tem legitimidade nem fundamento ético, social ou geográfico, não passa de um exercício abusivo do poder do dinheiro sobre a liberdade, a cultura e a tradição das nações desportivas.

Neste caso, imaginar que o eixo do interesse internacional pudesse desviar-se para a latitude de Riade é um pensamento exclusivo de Cristiano Ronaldo, à maneira dos majores-generais que nos aparecem na televisão a traçar cenários miríficos sobre as manobras gloriosas do decrépito exército soviético.

Podem “vir craques” para os Al-Hilals, Al-Nassrs e quejandos, com o mesmo critério e olho clínico com que atualmente se recruta carne para canhão nos gulags da Sibéria, ou seja, a eito e às cegas, que aquelas equipas nunca deixarão de parecer (e ser) pelotões mal amanhados de farroupilhas.

É apenas dinheiro o que move estes emergentes cavaleiros do apocalipse futebolístico, pois a Arábia Saudita não é do Futebol, tal como a Crimeia não é da Rússia.

Invadindo o mundo do futebol com os seus tanques e drones carregados de petrodólares, tornou-se uma ameaça ridícula que, quando tudo terminar, deixará somente umas dúzias de milionários e um imenso buraco e ruínas para reconstruir quando as equipas ficarem sem munições e os estádios desertos de público e minados pelo desinteresse, como acontece na China, que passou por um processo idêntico na década passada.

E, no fim de tudo, é provável que algum sheik, responsabilizado por esta insanidade, também acabe por tropeçar num varandim ou por beber chá por uma caneca enferrujada. Mas os Prigozhins da bola, sempre protegidos no grande albergue cacofónico da FIFA, não deixarão de ir enganar camelos noutras paragens. 

EFAB⚽LAÇÃO (42)

crist.jpeg

Os franceses enriqueceram o código desportivo ao darem a cor das páginas originais do “L’Équipe”, o jornal n.º 1 do desporto mundial, o significado de vitória, o amarelo dourado dos líderes e campeões, a camisola que distingue o primeiro do pelotão.
Mas os brasileiros, com o seu infinito talento para reinventar a língua portuguesa, ofereceram-nos o verbo “amarelar” para retratar o ridículo da falta de coragem perante os desafios da vida. É o amarelo negativo, do crepúsculo, do empalidecimento, da queda da folha - em contraste com a alegria irradiante da rainha Leopoldina imortalizada na bandeira e nas camisolas do “escrete”.
A mesma cor tanto pode significar vitória (“nasr”, em árabe) como ocaso, luz e penumbra - dependendo do enquadramento e do ângulo de observação.
Como comparar o amarelo triunfante de Jonas Vingegaard com o amarelo pálido de Cristiano Ronaldo.
Coincidência de verão, nestas semanas de emocionantes e agonísticos desafios nas montanhas de França, aprendendo os nomes intrincados dos novos heróis do pedal europeu, regressou o futebol no calor do Algarve com a apresentação da nova equipa do jogador que todos conhecem, um Cristiano Ronaldo em acelerado programa de propaganda a ensinar-nos em entrevistas diárias - como nunca o vimos na seleção nacional - a bem pronunciar Al-Nassr e a vender a camisola amarela de um dos vários emblemas do harém clubístico do Rei das Arábias.
Habituados ao “peso” das camisolas históricas que Cristiano vestiu ao longo da carreira, foi um choque vê-lo de amarelo, a lembrar o Beira Mar de Eusébio, 40 anos atrás.
À primeira vista, parece o Rei-Sol, de brilho ofuscante. Mas depois, seguindo, penosamente, a sua marcha errática tentando sobressair como único soldado garboso numa parada de saltimbancos trôpegos, é o amarelo do outono que se sobrepõe aos nossos olhos, melancólico e triste. E lamentável.
Cristiano Ronaldo amarelou e ameaça prosseguir este desfile de “globetrotters” caducos, colhendo o aplauso e reconhecimento dos que nunca puderam vê-lo de perto no auge da carreira europeia, agora nos confins da Ásia, o derradeiro el-dorado, onde vai encher arenas nos próximos dois anos como o homem-bala na última digressão do circo de feras.
Portanto, a camisola do Al-Nassr, o Vitória de Riade, a ser enxovalhada em sucessivos jogos frente a equipas de Ligas em perda de “qualidade”, como o Celta de Espanha e o Benfica de Portugal, nunca dará a Cristiano Ronaldo a dimensão de um n.º 1 do pelotão do maior desporto global.
Pelo contrário, é como um parasita à boleia da aura e da energia do jogador português para dourar aos olhos do mundo a infâmia de um regime sanguinário e medieval. Que, no entanto, também há-de cair de maduro.

EFAB⚽LAÇÃO (41)

felix.jpeg

Chegamos ao fim de julho, a duas ou três semanas do recomeço das competições, e João Félix continua sem clube, sem futuro, sem perspectivas, sem planos - arrastando penosamente o dia a dia da que terá sido a mais mal planeada carreira de um futebolista de primeiro plano internacional.

Desde a sua “explosão” nos seis meses de êxtase vividos com Bruno Lage no Benfica, ele tem estado entregue a uma “entourage” perdulária, do pai ao agente, passando por treinadores preservativos e por “influencers” obscuros que o têm encaminhado por atalhos perigosos rumo a uma lamentável história futura - reprise da velha e gasta epígrafe “ao lado de uma grande carreira” que acompanha a memória de muitos génios sem talento para o trabalho, ainda que mais baratos.

João Félix sem lugar num futebol que Cristiano Ronaldo, seu parceiro na seleção, considera menor e sem qualidade, é uma situação anacrónica, inexplicável, que obriga a alguma reflexão para lá da espuma das lavandarias televisivas onde os jogadores são todos magníficos e dignos de todos os milhões até caírem em desgraça e ganharem o selo de “descartável”.

Existe uma corrente perversa, alimentada por alguns observadores encartados, ainda incrédulos e em negação ao montante recebido pelo Benfica há quatro anos, que se delicia e reconforta com o desperdício, entremeado de fogachos, sobre os relvados das competições mais exigentes, mostrando uma convicção pelas incapacidades de João Félix semelhante ao juízo com que tantos imbecis decretam que a Terra é plana.

A esta inveja primária e irracional, por vezes hilária, que tem acompanhado a carreira do jovem beirão desde que decidiu emigrar antes do tempo certo e para o destino errado, opõe-se agora o pânico perante a possibilidade meramente académica de regressar temporariamente ao Benfica, para tentar relançar o tal percurso ameaçado. 

Mas são as mesmas pessoas, as que o consideram um erro de “casting” do Atlético de Madrid, influenciado pelo hipnótico “marketing” do Seixal, um desperdício de dinheiro, um produto do Mendes e dos seus avençados, e as que, agora, atiram lancinantes avisos ao Benfica sobre os perigos da desestabilização do plantel e do desequilíbrio do trabalho de Roger Schmidt - uma tendência alarmista que já tinha acompanhado, ao largo, as negociações para o regresso do velho e ultrapassado Di Maria.

Chega a ser comovente a preocupação com a balbúrdia que João Félix traria ao Benfica, desde a ruína financeira ao caos no balneário - o Neres, o Rafa, os Gonçalos, o Musa, o Schjelderup, o Tengstedt, todos com a vidinha perturbada: Rui Costa, vê lá no que te metes!

E, pelo mesmo diapasão, o ângulo do jogador falhado, se aceitasse dar um passo atrás no currículo: que vergonha, que vexame seria para João Félix e para Jorge Mendes!

É extraordinário como um jogador que há quatro anos apenas dá tropeções e quedas consiga inspirar tanto receio, inveja e desespero entre a turba dos “adeptos” do futebol. O talento de João Félix incomoda e assusta, embora a sua produção não descole da mediania, depois de vários anos sob detenção do torcionário Cholo Simeone, pelo que qualquer equipa e treinador que privilegiasse o futebol de ataque devia chegar e sobrar para lhe endireitar a carreira. 

Talvez seja esta a “humilhação” sobre a qual escreve hoje um dos maiores admiradores secretos do Benfica.

 

FOTO A Bola

EFAB⚽LAÇÃO (40)

bugatti.jpeg

Acordo com “notícia” de centenas de jovens eufóricas a marcar lugar na primeira fila de um concerto musical com início mais de 24 horas depois e em protesto contra a falta de condições do recinto.

Logo seguida de “entrevista” com ministro preocupado com os portugueses que não suportam a “taxa de esforço” para pagar a renda da casa e têm de ser ajudados pelos outros, os que aguentam, ai aguentam, aguentam.

E da “reportagem” à porta do tribunal onde está a prestar declarações um génio do empreendedorismo e da gestão a quem acabam de ser confiscados 18 Ferrari, Lamborghini, Bugatti, Aston Martin e Rolls-Royce, apesar de o seu meio de transporte regular ser o helicóptero.

Num dos jornais fala-se de despovoamento e da sentença de morte das aldeias do interior, cujo “futuro é ir fechando as portas”.

Já não tenho idade para entender o meu país e suporto mal sentir-me estranho a esta bipolaridade entre o novo-riquismo financeiro e o subsidiarismo económico em que vive uma larga franja da sociedade. 

Viro-me para a bola.

O Benfica enche de euforia um estádio para um ensaio na Suíça, pondera pagar oito milhões de euros de salário a um jogador que ninguém quer na Europa e 

prepara-se para contratar o décimo reforço em doze meses, ultrapassando os 150 milhões de euros em compras no estrangeiro, desde o verão passado.

O FC Porto recusa todos os dias uma oferta de 15 ou 20 milhões, às vezes mais, pela sua garagem de topos de gama, de Diogo Costa a Taremi, passando por Otávio, e respira saúde financeira, talvez até capaz de encarar o esforço de construir o seu próprio centro de formação e sair, finalmente, do programa de renda social no condomínio do Olival.

O Sporting marca lugar na primeira fila para conhecer o seu jogador mais caro de sempre, ao mesmo tempo que estuda a “taxa de esforço” para pagar um plantel muito acima das suas possibilidades no limiar de um ano terrível em que só uma genial gestão desportiva e económica pode manter o clube no seu nível histórico.

Cristiano Ronaldo, o outro português proprietário de um Bugatti de oito milhões, num raro assomo de modéstia, anuncia que não volta a jogar na Europa, trocando uma casinha cosmopolita por uma tenda nas dunas sauditas, porque as Ligas europeias perderam muita qualidade, estão em processo de “desertificação” como as aldeias das berças.

Regresso ao mundo real.

Na televisão mostram um termómetro com 52º graus no Vale da Morte e dizem que é por causa das “alterações climáticas”: finalmente uma notícia em que tudo faz sentido.

 

FOTO Iol.pt

16 Jul, 2023

O meu paizinho

Hermínio da Silva Capaz Manha 1923 - 2023

Faz hoje 100 anos que nasceu, em Minde, o meu pai, Hermínio da Silva Capaz Manha, o Hermínio da Troça na piação dos charais do Ninhou, o Hermínio das Malhas Bebé na história da indústria têxtil, o senhor Hermínio, simplesmente.

paizinho.jpeg

O meu “paizinho” - tratamento de íntimo e exclusivo carinho que as novas gerações urbanas substituíram pelo “papá” universal — foi o melhor filho, melhor irmão, melhor marido e melhor pai que conheci. Infelizmente, só me dei conta disso quando senti, como sinto, a falta dele, porque naquele tempo tudo me parecia normal, partia do princípio de que todos os homens “velhos” morriam na sua hora.

Mas, no dia em que faleceu, fui surpreendido por uma frase, dezenas de vezes ouvida naquelas horas de desnorte e sufoco: 

“Era tão novo!”

Ele tinha 52 anos e eu olhava dali para o futuro a pensar que os 34 que me faltavam deviam chegar para conquistar o mundo - pareciam-me um tempo infinito e nunca podia imaginar a falta que ele me iria fazer, todos os dias, pela vida fora. Afinal, tudo passou num relâmpago, eu fiz muito pouco do que sonhava e agora, tarde de mais, olho para a imensidão da existência do meu pai, em tão pouco tempo, e não entendo como ele conseguiu.

Como Hermes, o desassossegado Deus Mensageiro dos gregos, foi sempre uma pessoa positiva, sensível, comunicativa e eloquente - a sua assinatura caligráfica, admirável e inimitável, pela Parker personalizada que me coube em herança, era como um auto-retrato de sensibilidade, estilo e carácter.

image.jpeg


Dele herdei, além da caneta “vintage”, não o nome próprio que deu a vários afilhados, mas, sem dúvida, o espírito inquieto e a impaciência para a rotina e a monotonia.

Foi seminarista, estudante, amparo de mãe e irmãos, empregado de escritório, industrial, comerciante, corretor de seguros, músico, jornalista, aguarelista, dirigente associativo, juiz de Nossa Senhora da Assunção, acólito católico e humilde auxiliar voluntário em todos os dias de peregrinações, chovesse pedra ou derretesse o alcatrão no terreiro do Santuário de Fátima. 

Só não foi bombeiro, deixando esse campo para o irmão, João Arlindo, o histórico comandante que transformou uma pequena brigada numa das corporações de Voluntários mais importantes da zona centro do país. 

Era empreendedor e agregador, se não visionário para aquele tempo, pelo menos adiantado para a sua circunstância: foi o primeiro anunciante regular no Jornal de Minde, como agente dos Seguros Império, desde a fundação em 1955.

Como fabricante de têxteis à saída da segunda Guerra Mundial, a partir de 1948, foi pioneiro na concepção, no marketing e na exportação, na primeira vaga de mais de 60 industriais que Minde veio a ter nas décadas seguintes, e também nas preocupações com o bem-estar social dos seus amigos operários, alguns deles imigrantes no próprio país e entregues à sua tutoria por famílias distantes em busca de uma vida melhor, fundador e dirigente da Associação Pró-Infância, ainda nos anos 50. E esteve na primeira linha do associativismo entre concorrentes por soluções industriais comuns, como as fiações e as tinturarias.

Contrariou a sua natureza desinteresseira ao aventurar-se no comércio com a loja da Nazaré, que, pelo menos, permitiu à família férias grandes e cheias, de ondas, escaldões e bolacha americana, bem como memoráveis e acidentados piqueniques no pinhal do Rei. 

Foi um melómano autodidata, sempre com o diapasão no bolso pronto a dar o lamiré para afinar vozes e sons do dia-a-dia, tendo fundado e dirigido desde os anos 50, literalmente, até ao seu último dia de vida, ao ser acometido de um aneurisma cerebral em pleno ensaio semanal, o Grupo Coral que, décadas mais tarde, deu lugar ao Charales Chorus, um dos ex-líbris da nossa terra.

Do gosto pelo teatro, desde os tempos de estudante de contabilidade em Lisboa, retirava sempre o melhor, o prazer e o respeito pela arte cénica, uma espécie de boémia abstémica, com o defeito do gosto pelas touradas, numa tertúlia de amizades para a vida. E, claro, o trabalho pioneiro, dedicado e fundamental, como tesoureiro rigoroso, da Casa do Povo de Minde e do seu excepcional e inovador Cine-Teatro Roque Gameiro, com a melhor teia cenográfica num palco de província, por onde passariam gerações de artistas mindericos e covanos, e onde anos mais tarde vimos, juntos e em êxtase, a “Música no Coração”, o filme que tão bem corporizava os três efes da sua ideologia de vida, de fé, família e fantasia. Quis o destino que fosse precisamente esse palco de récitas, música e dança a passar o testemunho, no seu último ano de vida, para a minha própria família futura.

Do pintor, guardamos as suas réplicas perfeitas das aguarelas delicadas e minuciosas das “Pupilas do Senhor Reitor”, a obra-prima do nosso antepassado mais ilustre, Roque Gameiro, cujo museu, na Amadora, me levou a ver ainda antes de concluir a escola primária. Bem como os carvões, expressão de angústia e raiva, que lhe ajudaram a suportar os dias da ignomínia de uma detenção absurda e injusta numa cela cuja porta foi mantida aberta por carcereiros envergonhados, nos últimos meses do Estado Novo.

“A tristeza oprime, mas o vexame deprime”, disse-me uma vez, com o conselho para valorizar mais os dedos do que os anéis e tentar enfrentar sempre as adversidades com coragem e frontalidade.

Do correspondente, deixou-me sobretudo memórias de prazer pelo trabalho modesto mas importante de contribuir para grandes jornais da capital, A Bola e o Diário Popular, nem que fosse apenas o resultado dos jogos de domingo na região, os quais me ensinou a ver pelos ângulos da curiosidade, da admiração e do desportivismo.

IMG_2493.jpg

Era sportinguista, sócio sofredor à distância, teve um cão Serra da Estrela chamado Leão e adorava futebol, respeitando adversários e árbitros, para cujos erros de visão reservava, em surdina e sem ofensa, o implacável juízo de “está a precisar de ir ao Isabelinha”, o oftalmologista de todos os ribatejanos.

Respeitou a minha opção rebelde quando me viu chorar pela perda da Taça dos Campeões Europeus de 1968 - não foi à toa que escolhera para meu padrinho um sócio fervoroso do Benfica, António Vaz Neto, curiosamente também um dos primeiros cronistas regulares do Jornal de Minde.

Amador de fotografia e da sua Kodak de fole, foi amigo de juventude de António Capela, o maior de todos os sportinguistas, que tão importante veio a ser quando me aventurei na profissão que quis abraçar. 

As tardes de domingo eram sagradas, fosse com o Vitória, naquela esquina altaneira sobre a bandeirola de canto da baliza norte, onde aprendi que o futebol entende-se melhor quanto mais elevado for o ponto de observação, de associado participativo e generoso, em particular nos anos históricos da construção do parque de jogos.

Ou em romaria ribatejana de Fátima a Benavente, de Abrantes ao Cartaxo, fosse em Torres Novas, à beira do Almonda, por causa do craque Hugo, velho campeão leonino que ali encerrou a carreira; em Tomar, onde vi pela primeira vez jogar o Benfica; em Leiria, por onde passavam as melhores equipas da segunda divisão; ou em Coimbra, onde por ocasião de um Académica-Sporting, em plena crise estudantil, rebolámos na calçada do Calhabé à frente dos cavalos da GNR. 

Hoje apercebo-me que viveu a vida numa aflição, após também ter ficado órfão no final da adolescência, sempre a alta velocidade e sem descanso, como se soubesse que o destino lhe tinha marcado uma despedida prematura, sem direito a ver nascer os oito netos que adoraria. 

“Era tão novo!”

E agora, cem anos passados sobre a sua vinda ao mundo naquela garganta onde se fundiam as brisas frescas do planalto airoso com o odor às lamparinas de azeite dos pastores do maciço calcário, as minhas inspiradoras serras de Aire e dos Candeeiros, surpreendo-me pela bondade da sua natureza que exprimia sem vacilar, fosse por quem fosse - uma santa ingenuidade que eu nunca tive, mas da qual tentei assimilar a tolerância incondicional, pelas opções religiosas, políticas, sociais ou desportivas de cada um.

Obrigado por tudo, querido paizinho. 


HISTÓRIAS SEM INTERESSE NENHUM (10)

rothmans.jpeg

X jogos, Y golos, Z assistências, 2345 minutos - a cada grande plano num jogo de futebol entre cromos de álbuns menos populares, o comentador debita-nos números avulsos, sem termo de comparação, sem relevância analítica.

Chamam-lhe “estatísticas” e servem de impactante cartão de visita aos especialistas, sublimando o longo caminho feito por gerações anteriores de tentar oferecer ao espectador do futebol uma melhor compreensão do jogo, na linha do que já se fazia nas outras modalidades, do atletismo ao voleibol, cujos pioneiros eram sábios mestres da pesquisa e da demonstração.

Mas o que antes pretendia ser uma adenda de conhecimento e análise tornou-se ultimamente numa insuportável cacofonia numérica, mais algarismos e menos algoritmo, a sugerir a mudança de canal ou o recurso à banda sonora de Artur Jorge.

Os media portugueses foram dos últimos a chegar às estatísticas do futebol, a que não foi alheia a dificuldade crónica dos nossos jovens perante as matemáticas aplicadas, vulgo iliteracia, relativamente ao papão Mathema - diziam os gregos, “aprender, entender, saber, explicar”.

Dos anos 40 aos 80 do século passado da criação e expansão da imprensa futebolística, apenas um visionário se socorria das estatísticas do jogo nas suas crónicas (na Stadium): Domingos Lança Moreira, injustamente marginalizado na história do jornalismo desportivo. 

A geração de A Bola e do Mundo Desportivo era mais dada à escrita, às grandes tiradas eloquentes do que propriamente à chatice da análise: os jogos morriam aos 90 minutos e passavam à história pela verve de Carlos Pinhão ou Alfredo Farinha. 

Uma crónica valia por mil tabuadas, um “Hoje jogo eu” chumbado a quente impressionava como uma fotografia de alta definição cromática. 

A única contagem estatística que se registava nessa altura era a dos golos, por causa do prémio “A Bola de Prata”, mas que passava a zeros e sem acumulado a cada mês de agosto. Sei bem o trabalho que tive para finalizar as contas de Peyroteo e de Eusébio, que eram os mais fáceis.

Com a difusão dos jogos internacionais na RTP, começaram a ser apresentados os jogadores estrangeiros pelos dados acessíveis nos anuários do Rothmans, do Guerin Sportivo, da Don Balon, da France Football ou da Kicker. Toneladas de papel, milhares de escudos nas tabacarias da Baixa ou em assinaturas anuais, e muita pestana queimada para quem quisesse saber de futebol internacional, conhecer os jogadores, as equipas, o desenho dos emblemas ou as cores dos equipamentos, as tendências, as inovações, compreender tácticas e estratégias sem ver o jogo.

Fazia-me impressão ouvir descrever o peso, a altura, o número de jogos e golos, o currículo dos jogadores estrangeiros, em contraponto com uma apresentação árida e despersonalizada dos portugueses. Havia um claro défice de informação disponível pois o primeiro assomo de anuário, os míticos Cadernos de A Bola, apenas difundia a informação básica das fichas federativas, praticamente sem conteúdo desportivo.

Por isso, decidi aproveitar o meu primeiro desemprego, depois do crime da extinção da ANOP, para me embrenhar na Hemeroteca Municipal durante sete meses e escalpelizar ficha a ficha, perceber quem era quem entre nomes, alcunhas, equipas só com dez e todo o tipo de imprecisões do tempo do jornalismo amador.

Graças a isso, a revista Foot foi a primeira publicação nacional a publicar no começo da época o currículo em jogos e golos de cada jogador, ainda na idade do papel, antes da invenção do Works, do avanço do Excel e da maravilha do Numbers - uma informação que me acompanhou, mas décadas seguintes na Gazeta do Desportos, no Semanário Desportivo, no Expresso, no Record, na TSF e na TVI, até se tornar obsoleta e cancelável na era digital.

Com a tv por satélite, pirateando a Sky Sports e o Canal Plus, e com as reportagens nos Estados Unidos, a descoberta do Elias Sports Bureau que contabiliza o desporto há 110 anos, contactando as suas complexas “statsheets”, e finalmente com o advento dos jogos eletrónicos e das “Fantasy Leagues”, aprendi que o negócio das estatísticas desportivas tem dois momentos: 

  • a ”compra” do máximo de informação, como mineração de kilobytes do infinito filão dos pontapés na bola;
  • e a “venda” do diamante cuidadosamente delapidado, valioso, surpreendente e memorável.

O mesmo número pode parecer pechisbeque hoje e valer como jóia preciosa amanhã.

É incomparavelmente mais interessante saber que determinado jogador raramente faz os 90 minutos, que o seu tempo de jogo tem alguma relação com os resultados positivos ou negativos da equipa, que joga menos ou mais com o atual ou o anterior treinador - do que ouvir a seco e sem enquadramento a enumeração do acumulado esdrúxulo da sua ficha de minutos, sem perceber se é muito ou pouco, relevante ou irrelevante, num contexto com mais de 22 jogadores.

O Zero-zero, o Transfermarkt e o Sofascore são os Rothmans da era digital e facilitam ao máximo a vida dos analistas, aos quais só falta agora perderem algum tempo a analisar: a fazer o trabalho de casa, como se dizia no meu tempo. 

Era o que fazia, na BBC, o comentador John Motson, falecido este ano depois de ter falhado uma tentativa de salvar o “obsoleto” e descartável Rothmans Yearbook, a sua “cartilha” profissional ao longo de 40 anos e mais de dois mil jogos na televisão e na rádio, incluindo 29 finais da Taça de Inglaterra.

Por exemplo, eu gostava de ter sabido na hora, que Abel Ruiz tinha um rácio baixo (agora 13/19) de penaltis transformados, não marca um golo de penálti há mais de três anos e desperdiçou o único tentado com a camisola do Sporting de Braga. E que, pelo contrário, o guarda-redes inglês Trafford apresentava uma taxa elevadíssima de defesa de grandes penalidades (agora 4/8).

Demorei 20 segundos a obter estas estatísticas e assim entendi melhor a tensão insegura que o avançado espanhol exteriorizava nos momentos que antecederam o seu falhanço histórico na final de sábado. 

 

FOTO: John Motson (19-45-2023) entre os 33 anos de anuários do Rothman

07 Jul, 2023

Trotski e o dragão

EFABLAÇÃO (39)

Andr--Villas-Boas-after-h-007.jpeg

Na iconografia bolchevique há um cartaz de 1918, por sinal, horrível, que reproduz a cena de São Jorge matando o dragão, mas com o revolucionário Leon Trotski montando o cavalo branco, embrulhado numa bandeira vermelha e lancetando sem piedade a criatura de má índole, simbólica da contra-revolução.

Anos mais tarde, Trotsaki foi vítima de depuração pela propaganda estalinista, sendo apagado das fotografias do regime, mas não da História.

Lembrei-me desta passagem perante a notícia de que a propaganda do FC Porto tinha obliterado André Vilas-Boas e as suas extraordinárias vitórias de 2011 num video promocional e motivacional de início da nova época.

Villas-Boas, salvo seja, encarna esta bela descrição de Trotski, por Lunacharsky, nos seus “Perfis Revolucionários”:

andre trotsky.jpeg

“Era então extraordinariamente elegante, bem diferente de todos nós, e muito bonito. Essa sua elegância, e especialmente uma espécie de descuidada e poderosa maneira de falar com não importa com quem, chocaram-me desagradavelmente. Olhei com desaprovação para esse janota, que balançou a perna sobre o joelho, e escreveu apressadamente com um lápis um esquema do discurso improvisado que ia fazer. Mas falou admiravelmente bem…”

Elegante, janota, de discurso poderoso e fluente, meio diletante, mas carismático, a prometer mudar a sociedade - de repente, vejo em Vilas-Boas um perigoso revolucionário para o "status quo” do "Partido” azul e branco, a arriscar idêntica purga sumária da que condenou o dissidente Trotski ao exílio e à morte: 

“Uma tremenda imperiosidade e uma espécie de inabilidade ou uma vontade de ser inteiramente cuidadoso e atencioso com o povo, uma ausência daquele charme que sempre cercou Lenine, condenaram Trotski a uma certa solidão. Até mesmo alguns dos seus amigos pessoais tornaram-se depois inimigos seus declarados…"

Mais de cem anos depois, vemos um video promocional sobre ícones da história de um clube, que omite os feitos e o líder do ano em que venceu todas as provas internas e uma taça europeia - o 2011 de André Vilas-Boas. Alegadamente porque a camisola desse ano não teria relevância estética.

- Sim, ganhámos tudo o que havia para ganhar, foi uma época inolvidável, mas a camisola era horrível.

- Ah bem, pois claro, realmente, que falta de gosto, até estragava o filme.

Expliquem-me que não foram os “contra-revolucionários” a desafiar ostensivamente este moderno cavaleiro do Bem, mostrem-me que não foram os papistas a ultrapassar as encíclicas papais.

O assunto é paroquial, sem relevância num contexto de partido único, apesar do folclore democrático suscitado pela declarada ambição do antigo vizinho de Bobby Robson de concorrer às próximas eleições de uma agremiação que o ortodoxo Pedro Marques Lopes define como “o clube do povo e da democracia, não o clube de uns tipos que se julgam predestinados”.

Dias antes, o primeiro-ministro António Costa tinha feito uma visita particular ao Museu do FC Porto, para afogar os seus “desgostos”, tendo como cicerones Pinto da Costa e Rui Moreira, baluartes da “doxa” portista. 

Dá para imaginar o diálogo junto da vitrina da Taça UEFA de Dublin:

- Vamos lá ver… Bela conquista!

- Sim, infelizmente a camisola não era de sonho.

 

FOTO Lee Smith/Action Images

05 Jul, 2023

Maria, está didi *

EFAB⚽LAÇÃO (38)

358101885_10227030946777237_6447593112853129115_n.

É o Super Homem? É um avião? É a Águia Vitória? É o Di Maria?
A populaça fixou-se nos ecrãs com a mesma excitação dos pontas-de-lança colados à vedação do aeródromo, de nariz no ar e coração aos pulos, as redes mapearam à polegada o rasto digital do Netjets entre Ibiza e Tires e a CMTV a transmitir em direto a aterragem de um TVDE com asas, mas sem passageiro, um Transporte Vazio De Estrelas.
Deve ter sido o anticlimax do ano, com o Terceiro Anel a congestionar o Flightradar24 para seguir o CS-LTH com a mesma paixão, ou maior, do que a expectativa de ver aterrar em segurança sobre um naco de bife a mascote de rapina em enésimo voo picado sobre o relvado da Luz.
Afinal, Di Maria, por mais um dia, não chegou. Será que vai chegar hoje?
Cada dia é um dia Di Maria, como o aviso aos alienados do vinho na parede das tabernas antigas, “Hoje não se fia, amanhã sim”.
Mas neste vazio que angustia os benfiquistas como o nevoeiro do Levante nas praias do Reino, vislumbra-se cada vez mais nítida a sombra, como um fantasma, do anti-herói.
O novo Cavani, gritam os sebastianistas.
Outro Ricardo Horta, agouram os velhos do Restelo.
Do que é que estamos a falar? - perguntaria o comentador Rui Pedro Brás. Do estado do jornalismo, em particular o desportivo, que já foi uma escola por onde passaram quase todos os maiores da profissão em Portugal. Como se queixavam os meus avós para as suas Marias à hora da mesa, "esta trilha está didi*" - este jornalismo está dideza*.
Passou mais de um mês, não me lembro de ter sido citada uma única fonte nominal, do jogador, que ainda libertou uns "sorrisos esclarecedores" ao ser apertado por microfones num qualquer evento de férias, aos dirigentes, passando pelos agentes e intermediários. Apenas vizinhos, conhecidos, passantes que ouviram alguém falar.
E as redes, claro, o jornalismo de rabo sentado, as redes que ontem paralisaram o mundo encarnado com um devaneio de alguém que descobriu um voo privado entre Ibiza e Tires: “ecce homo!”.

358362998_10227030946817238_2474825273262749258_n.

Como o enredo de uma novela, capítulos fantasiosos de uma realidade paralela com fundos, laivos ou ténues contornos de verdade e muito “wishful thinking”, extraordinária expressão do inglês que sintetiza o essencial desta época do ano.
- Benfica seduz Di Maria
- Di Maria a um passo do Benfica
- Aí está o regresso de Di Maria
- Di Maria já está
- Di Maria sorri ao Benfica
- Di Maria sente o Benfica
- Di Maria: "Estamos perto”
- Di Maria como o aço
- Di Maria perde dinheiro na Luz
- Di Maria quase a chegar
- (Di Maria) Estou a Chegar
- Di Maria chega hoje
Do Verão de 2020 para hoje nada mudou. Na altura foi Cavani, outro cliente de Ibiza, o sebastião de ocasião:
- Benfica sonha com Cavani
- Esforço por Cavani
- Cavani aceita 3 anos
- Cavani avançou
- Cavani a caminho
- Cavani é para fechar hoje
- Benfica sem dinheiro para Cavani
E há ano, com Ricardo Horta a mesma receita a alimentar a pauta jornalística de um mês sem bola:
- Ricardo Horta é o sonho de Rui Costa
- Horta quer o Benfica
- Adeus Braga, olá Benfica
- Horta mais perto, negócio está fechado
- FC Porto tenta desviar Horta
- (Horta) a chegar
- Horta para o estágio
- Benfica já procura alternativa (a Horta)
José Neves de Sousa, um dos grandes mestres, tinha um comentário definitivo para as dúvidas, perto de se tornarem desilusões, geradas pelas maiores expectativas: “está tudo tratado, só falta o dinheiro”.
Entretanto, em cenas do próximo capítulo, mas com corpo de letra muito abaixo de parangona deixando escapar uma pontinha de “vamos lá a ver”, o clássico final feliz: “Di Maria esperado hoje para assinar contrato”.
 
*) em Calão Minderico, Didi e Dideza significam mau, medíocre, duvidoso, de pouco valor.

 

 

EFABLAÇÃO (37)

all cristiano.jpeg

Se o futebol fosse uma Religião, Cristiano Ronaldo seria o seu Profeta.

Se o Reino Saudita fosse apenas a colina de Safa, lá existiria um vulcão a expelir torrentes de ouro negro, como os poços do deserto da Arábia.

Diz o livro que o monte sobranceiro a Mecca não se moveu quando Maomé o chamou para provar as suas profecias, não porque falhasse o milagre, mas apenas por misericórdia divina de não esmagar as pessoas com o terramoto pretendido: “Irei eu à montanha, agradecer a Deus por nos ter poupado uma geração de obstinados”.

Assim fez Cristiano Ronaldo: em vez de esperar que o dinheiro da Arábia Saudita viesse esmagar a lógica competitiva do futebol internacional, foi ele mesmo para Riade banhar-se na inesgotável montanha dos petrodólares. E arrastando agora uma legião de “obstinados” para quem o profano dinheiro também vale muito mais do que o milagre da vida.

- E pure si muove! 

Diz o mensageiro que a Liga da Arábia Saudita, cheia de jogadores e treinadores portugueses e pré-reformados de outros países periféricos, é "muito competitiva” e vai ser uma das melhores. Só Lionel Messi não foi suficientemente crédulo - ou estúpido - para lhe seguir a peregrinação.

Permito-me o pecado da dúvida, quiçá da descrença, Cristiano seja louvado!

Que adepto europeu em seu perfeito juízo se dispõe a seguir a Liga da Arábia Saudita? Nenhum. Porque há uma barreira cultural que não permite sequer decorar o nome dos clubes, quanto mais associar-lhes os jogadores ou treinadores e entender as rivalidades. 

Há craques ingleses na Liga Saudita? Há alemães? Espanhóis? Italianos? Não, apenas portugueses, franceses islâmicos e alguns africanos e sul-americanos de segunda categoria para fazer número. Nunca suficientes para subir o nível de penúria deste campeonato a um ponto de interesse do público consumidor europeu - ou, sequer, o asiático, que há-de sempre preferir as tradicionais disputas no velho continente.

Em seis meses do melhor jogador do Mundo ao serviço do Al-Nassr, nem um jornal, nem uma televisão, nacional ou internacional, teve interesse em reportar a vida desportiva de qualquer dos nossos heróis com nome de “infiéis”, no coração da vida islâmica, de Cristiano a Jesus, passando por Espírito Santo.

Eles estão no exílio, podres de ricos, mas desportivamente indigentes. Descartados.

A indiferença tem sido tão gritante que não pode deixar de se associar o súbito interesse do jogador pelo negócio da informação à ideia de uma próxima jogada de propaganda desesperada ao seu ocaso desportivo: mal posso esperar pelos “pés em riste” e “polémicas” tontas nos rodapés da CMTV de um acalorado “late show” All Cristiano. 

Estes erros já tinham sido cometidos há muitos anos com a tentativa de impor o “soccer” nos Estados Unidos, através da contratação de grandes jogadores em fim de carreira - e foram só Pelé, Cruyff, Eusébio, entre muitos outros. E mais recentemente com o estouro de mais de cinco mil milhões de euros em quatro anos na Super Liga da China, levando à falência 16 dos clubes profissionais criados. Porque onde não há religião, nunca haverá fé.

A lavagem do dinheiro saudita enche o tambor da máquina do futebol depois de idênticos empreendimentos noutras modalidades, em particular o golfe, com a sua LIV Golf, que dinamitou o modesto European Tour e fez abanar a poderosa PGA americana, contratando a maioria dos melhores jogadores mundiais e propondo um modelo de competição e de cobertura mediática realmente inovadores numa modalidade tradicionalmente bloqueada por modelos conservadores. 

Porém, o sucesso ainda relativo do LIV Golf não me parece replicável no futebol: à excepção da final, as provas são todas realizadas bem longe de Riade, da Austrália à Califórnia, passando pela Andaluzia, onde está esta semana, e não há qualquer jogador saudita envolvido. 

Ou seja, quando ajoelha e se prosterna de bolsos bem abertos e virados para Riade, o futebol e o desporto só esperam o milagre da chuva de dinheiro, montanhas dele, e só recitam versículos de sete ou oito algarismos - o “sportswashing” como ritual sagrado.

 

FOTO AFP