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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

EFABLAÇÃO (31)

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Alejandro Grimaldo marcou um golo e chorou no último dia em que envergou a camisola do Benfica, encerrando oito épocas de brilhantes serviços, em que foi tolerado e subestimado, raramente idolatrado, mas entregou sempre alto rendimento, estatísticas ímpares e temperamento indomável. Grimaldo foi um jogador à Benfica, mas com o “defeito” original de vir de Espanha.

Despediu-se com a melhor época de sempre e terá sido o melhor do plantel ou, pelo menos, o de performances mais equilibradas e regulares, nunca se escondendo ou alijando responsabilidades, mesmo quando a desconfiança dos adeptos pudesse recomendar uma atitude defensiva e de discrição.

Da secular rivalidade ibérica faltava a referência de um nome que ligasse os dois países a partir de lá. Grimaldo assumiu finalmente essa embaixada e será, no futuro, o “espanhol” de uma história que vem plantando heróis nos sete cantos do Mundo, em pouco mais de 40 anos de abertura do clube aos jogadores estrangeiros.

Por causa de uma brincadeira de mau gosto no balneário, quase foi cancelado pela febre dos bons costumes que vem condicionando os clubes a partir da imbecilidade das redes sociais e suas réplicas nos painéis deseducativos das televisões.

Sete anos de benfiquismo de primeira linha postos em causa pelo desejo de ir de férias uma semana mais cedo - a falta de respeito. Depois de três títulos, centenas de jogos, milhares de quilómetros de corredores e sprints, dezenas de golos e passes decisivos, descobria-se que era pequeno, não sabia defender e não tinha categoria internacional.

Quando a última época começou, ele estava na câmara de ejecção do Seixal. A um ano do termo do contrato, procurou-se afanosamente uma transferência de recurso, para diminuir o prejuízo, a que ele se opôs com valentia e determinação, vislumbrando no profissionalismo do novo treinador a melhor oportunidade para recomeçar do zero, depois de a opinião publicada e as más épocas da equipa terem, mesmo, dado cabo da sua reputação.

Há precisamente um ano, Grimaldo era o conveniente espanhol expiatório.

Mas com a confiança renovada por um novo timoneiro, não demorou a reimpor-se, na equipa e no campeonato, silenciando a maledicência e percorrendo, sem vacilar, o trajeto delineado para o ano da despedida: as melhores estatísticas de sempre, na Liga e na Europa - oito golos, 13 assistências, uma participação decisiva a cada três jogos -, e a reconquista do título, ao mesmo tempo que negociava o futuro profissional noutras paragens, longe da tradição e da dimensão planetária do Benfica, mas adequado aos seus desejos de mudança.

Na última jornada, a oportunidade de executar uma grande penalidade e fazer um derradeiro golo de despedida, atropelando a rotina hierárquica de João Mário e a oportunidade de aumentar a soma de Gonçalo Ramos, mostrou uma vez mais a faceta irreverente e corajosa do valenciano, enfrentando o monstro do Terceiro Anel com risco de uma despedida canalha, à espanhola, com vaias e lenços brancos, se lhe falhasse a canhota naquele momento de extrema emoção e nervosismo - que extravasaram em lágrimas e orgulho ferido no meio dos abraços da equipa e da rendição dos 60 mil.

O tempo dirá como será difícil ao Benfica substituir um dos seus melhores laterais de sempre, o tempo dirá quão bom ele foi ao longo destes oito anos. Um lateral determinante, líder, vencedor e que penou, paciente e laboriosamente, para conquistar o reconhecimento que tantos outros no mesmo palco alcançaram e desfrutam eternamente com muito menor esforço e dedicação.

FOTO Maisfutebol.iol.pt

26 Mai, 2023

A Feira e a Festa

EFABLAÇÃO (30)

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A Feira do Livro, lugar de perigoso ajuntamento dos fanáticos das bibliotecas, páginas meias com o santuário do Marquês, fecha as portas aos intelectuais da bola, para evitar que a febre deste sábado à noite degenere num batalha campal entre o profano e o sagrado, um monte de famílias armadas de sacos de cartapácios a atacar inocentes foliões de camisola e cachecol.

Quem quiser celebrar a conquista de um título bibliográfico comprando um show de letras, um ensaio de ataque, um romance de defesa, um compêndio de jogadas poéticas, ou simplesmente histórias dos novos heróis de VAR e alguidar, tem de fazê-lo antes do pôr do sol, porque a noite de sábado foi reservada pelos inteligentes das arquibancadas.

Em nome da tranquilidade e boa ordem dos rebentamentos de petardos, da afinação dos coros de insultos e do ritmo cadenciado das cargas policiais, estão adiados para noites mais problemáticas da próxima semana os debates tóxicos com autores da literatura contemporânea, os fóruns de leitores insatisfeitos, as críticas apaixonadas aos editores e as ameaças veladas aos autores desalinhados.

Neste sábado à noite no Marquês, não haverá violência nas livrarias, mas apenas um culto da claque do 38 - qual derradeiro fascículo de uma fantástica ficção científica tornada realidade.

São noites como a deste sábado que nos traduzem a importância transcendental do futebol, pináculo da cultura dos portugueses, e colocam nos seus lugares a inscícia dos escritores e a estupidez dos leitores.

Lembro-me muito de um título de jornal de letras “times new roman” numa matéria sobre Francisco Geraldes, jovem do Sporting que desafiou a compreensão da turba boleira pelo seu interesse em escritos de muitas páginas, de Tolstoi a Dostoiévski: “O que se pode esperar de um jogador de futebol que lê José Saramago?”

Viva a bola! Abaixo os livros!

24 Mai, 2023

O valor de um nome

HISTÓRIAS SEM INTERESSE NENHUM (7)

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Sempre que as pessoas mostram estranheza ou treslêem o meu nome, respondo “sim, é Manha, mesmo”. Faço-o desde que me conheço, com o orgulho de uma família e antepassados de grande tradição numa comunidade cujo lema é “Honra teus Avós”.

Ninguém escolhe a família onde nasce nem o nome que o distinguirá. Podia chamar-me João da Silva, ou João Afonso, ou João Carreira, ou João Dias, ou João Capaz - isto ponderando apenas três gerações numa terra anterior à nacionalidade. E o orgulho seria igual, porque todos esses apelidos carregariam a mesma herança genética de valor incomensurável e infinito. 

Mas os meus pais escolheram juntar dois apelidos também cheios de história e de significado. Os Querido, de Mira de Aire, e os Manha, de Minde. E eu tive tempo para me habituar, primeiro ao Querido, demasiado delicado para o meu gosto, e ao Manha, demasiado explícito para o meu feitio. Mas habituei-me, até com a ajuda de um correctivo socialmente condenável pelos educadores de hoje: “João Manha, quando faz mal, apanha” - deve ter sido a primeira cantilena que aprendi e que me balizou a vida até ao sexagenário.

O nome profissional Querido Manha, com as iniciais QM, foi-me atribuído no estágio na ANOP em 1978 e assentou-me bem. Ficou.

Quando as pessoas não me conhecem, mas simpatizam chamam-me Manhã. Quando me conhecem e antipatizam chamam-me Manhoso. Os primeiros acham graça e brincam, os segundos acham-se superiores e insultam- como aconteceu nos últimos dias com a casta dos adeptos de determinados clubes irritados com um escrito da minha liberdade intelectual.

Como diz o outro, são (mais de) 40 anos disto. 

Quase todos os dias há um imbecil, ou vários, que se deslumbra com a epifania de avaliar o meu carácter e integridade através do bilhete de identidade, sem pejo de alardear publicamente a sua boçalidade e ignorância.

A todos respondo da mesma forma: “é Manha, mesmo”. E, quando estou bem disposto, ainda acrescento que “manhosa” em calão minderico, a língua dos meus extraordinários antepassados, é o nome para o animal silvestre reconhecidamente mais inteligente das serras de Aire e Candeeiros, a raposa.

23 Mai, 2023

Perigo de golo

EFABLAÇÃO (29)

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O lance do segundo golo do Benfica no domingo é um momento para a história, daqueles que são recordados para sempre. À luz das leis do futebol e suas incontáveis interpretações, recomendações e excepções, eleger-se-ia como exemplo para memória exemplar se os dirigentes da arbitragem não fossem tão cobardes na defesa do seu ofício, preferindo alimentar a dúvida por omissão e continuar a viver à sombra do tabu da “verdade desportiva”.

Em dois dias, ouvi e li as mais rebuscadas explicações a sustentar o protesto leonino, in dúbio pro queixoso.

Que Florentino estava em fora de jogo.

Que Florentino obstaculizou (!) - como revisão semântica do radical “Florentino obstruiu”, demasiado explícito para o desmaio de Coates.

Que Florentino tirou proveito.

Tudo certo, mas também tudo legal. 

Porque não teve interferência na disputa da bola. 

Porque se limitou a manter a posição enquanto o trôpego Coates sucumbia à electricidade estática da camisola vermelha. 

Porque se soube posicionar corretamente para concluir uma jogada que, noutras circunstâncias, seria elogiada como das melhores do produtivo laboratório de Roger Schmidt e Javi Garcia.

Vi o jogo numa televisão inglesa e a única crítica que ouvi foi ao colapso ridículo do gigante uruguaio e à sua preguiça em levantar-se para ajudar os companheiros sufocados pela avalancha de remates contrários no coração da área.

Há muitos anos, os narradores brasileiros entenderam chamar a este tipo de jogada, que consiste em o defesa se deixar contactar e cair à frente do avançado, como “perigo de golo”, uma forma expedita de os maus árbitros se isentarem de responsabilidade em lances confusos na área, protegendo quem defende em contraciclo à essência do jogo.

E não pensava dar uma linha para este peditório até me chegar à vista a leitura de Markus Merk, sem discussão um dos três melhores árbitros mundiais de sempre, que, abreviando, fez a mesma leitura do lance: fora de jogo posicional, bola fora do alcance dos jogadores em luta legítima pela melhor posição e triunfo natural da pressão do ataque sobre o mau posicionamento da defesa. 

“No lance aos 90’+4, no choque entre ambos os futebolistas - diz Merk - há um contacto de Coates com Florentino, mas é provocado pelo defesa do Sporting. Não há razão para anular o golo, o fora-de-jogo também não existe, pois a bola encontra-se numa zona fora do raio de ação”.

Apenas futebol, portanto.

Mas demos de barato que o Merk não percebe do assunto no cotejo com os Pinas e Leirós desta vida. E que, realmente, existe um fundamento para o choro dos perdedores.

Este lance é tão importante e ao mesmo tempo tão memorável que não se entende como os “defensores” e “responsáveis” da Arbitragem não o aproveitam para esclarecer, de forma oficial, taxativa e definitiva, em simultâneo, a intoxicante opinião publicada e a opinião pública intoxicada. Tal intervenção seria tão marcante e histórica como o próprio golo - ou mais. Seria didáctica e profilática.

Assim, é apenas mais um desperdício, mais uma anedota, mais de cem anos disto, o chamado “futebol português”, cujos derrotados insistem em nunca aceitar que a realidade estrague uma boa desculpa.

EFABLAÇÃO (28)

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Há um debate em crescendo que mede a força do benfiquismo pela bitola da verdade, uma dimensão metafísica onde não entra qualquer um sem antes ultrapassar os limites da insanidade nos testes à paixão.
“Verdadeiro Benfiquista” é já uma categoria patenteada quer nas redes sociais, onde se medem tamanhos, quer em canecas, t-shirts, flyers, bonés e cachecóis, que distinguem a classe dos legitimados da dos meros aspirantes, outrora “simpatizantes”. 
Hoje, Rui Costa, o jogador-presidente, é o comandante desse estado maior em que se acotovelam os pretendentes ao reconhecimento. Começou como apanha-bolas como aqueles serventes de pedreiro que chegam a construtores de arranha-céus e senta-se agora no trono dos deuses encarnados, tentando viver como dirigente o que perdeu como jogador.
À beira de conquistar o seu primeiro titulo ao fim de quase quatro anos de fastio, Rui Costa tem-se destacado pela recuperação de figuras desportivas do clube, talvez o maior rasgo da sua gestão ultraconservadora, a par da escolha cirúrgica do treinador Roger Schmidt. Ele desenvolveu, com sabedoria empírica, o padrão métrico que diferencia os “verdadeiros” dos outros, com o mesmo rigor taxativo com que me disse uma vez “você não é do Benfica!”
Na tribuna da Luz, por onde há pouco tempo circulavam ministros, juizes, amanuenses e outras figurinhas e figurões, vemos hoje os cabelos brancos e o sereno orgulho dos ídolos de outras décadas, segundo o princípio da gratidão pelo que fizeram pelo clube e não do interesse pelo que o clube pode fazer por eles.
A demanda pelo “verdadeiro benfiquismo”, visceral e acrítico, está latente na entrevista a A Bola de ontem de António Pacheco, um dos “traidores” do verão quente de 1993 que marcou a derrocada de quarenta anos de hegemonia, na qual se queixa amargurado pelo anátema de ter saído do clube, sentindo injustiça na comparação com tantos outros que foram e voltaram, depois dele, como o próprio Rui Costa.
“Não há um dia que não me apareça alguém a lembrar a minha decisão de trocar o Benfica pelo Sporting”, diz Pacheco, para quem essa teria sido uma mera decisão profissional tão legítima como a de quem trocou o histórico clube mundial pela modesta Fiorentina. Apesar da indulgência do atual presidente e antigo colega de balneário, o algarvio que se consola com os esporádicos convites para a Luz nunca será um “verdadeiro benfiquista” aos olhos dos que, neste louco ensaio sobre a cegueira vermelha, vêem Rui Costa como o paradigma dos seis milhões.
Pacheco não mereceu o regresso a tempo de uma reforma dourada que transformou o príncipe de Luís Filipe Vieira, esse falso benfiquista, num herdeiro predestinado da arte mágica de tocar virtualmente com o seu mítico bordão no ombro dos que merecem passar de adeptos anónimos a insignes cavaleiros da ordem SLB.
Uma enorme diferença, uma soberba transformação uma fantástica ilusão!
Mas o que distinguiu o verdadeiro benfiquismo deste insano revivalismo existencial dos nossos dias foram os anos em que o desvario dos dirigentes e o acórdão Bosman ditaram a incapacidade de o Benfica continuar a reter os melhores jogadores nos seus melhores anos, o real segredo da mística de “verdade”, dos Eusébios e Simões, dos Tonis e Nenés - porque não há Terceiro Anel em Florença, nem em Milão, nem em Barcelona, nem em Manchester.
É este o “verdadeiro” desafio que se coloca ao líder benfiquista, o de transformar uma conjuntura favorável numa estrutura estável: manter no plantel os jogadores que fazem a diferença, desportiva e emocional, com a mesma convicção e espírito identitário com que vai preenchendo, magnânimo até para os Pachecos arrependidos, as poltronas da sua corte.

FOTO Record

10 Mai, 2023

O último cigarro

HISTÓRIAS SEM INTERESSE NENHUM (6)

Cresci numa pequena vila provinciana e uma das imagens mais antigas da minha memória é a da contemplação de uma senhora, “de Lisboa”, fumando dentro de um carro junto à casa da família mais abastada, surpreendendo numa terriola onde nenhuma mulher pecava.

Aos 14 anos, eu já fumava tão regularmente quanto a clandestinidade me permitia e a rebeldia me estimulava e demorei muitos anos a perceber, por falta de informação, os malefícios do tabagismo. Estudei e trabalhei ao longo de duas décadas rodeado de fumadores e de tabaco, como se vivesse contaminado e não pudesse fazer nada contra. Mas passei os últimos a preparar-me mentalmente para a libertação.

Tive uma primeira experiência de privação durante quase dois anos, a meados da década de 80, pensei voltar a ser fumador ocasional, fracassei ao vício e voltei à luta, apoiado pela determinação de nunca permitir que os meus filhos me vissem fumar ou crescessem num ambiente poluído pelo fumo.

E, assim, no dia 8 de Julho de 1990, horas depois de ter estado na Praça de São Pedro durante a benção dominical do Papa João Paulo II, foi em plena bancada do estádio Olímpico de Roma, vendo jogar Diego Armando Maradona e Lothar Matthäus, dois dos melhores de sempre, que fumei o meu último cigarro. Ao intervalo do jogo, o Manuel da Costa, da RTP, cravou-me um cigarro e estendi-lhe o que restava do meu maço de SG Gigante:

- Toma, podes ficar com todos!

Um momento tão inesquecível, o do apagamento súbito e drástico, como fora aquele da ignição irresistível do desejo, vinte e tal anos antes ali ao pé da capela de São Sebastião.

Um ano depois, em trabalho, viajei com Rosa Mota nos Estados Unidos, onde ela vivia e treinava, na altitude e ar limpo do Colorado. Estávamos na imensa gare do novo aeroporto de Denver, quando me convidou:

- Venha aqui ver uma coisa bizarra.

Atravessámos o enorme saguão até se deparar ante os nossos olhos uma cena inesquecível de segregação imposta e assumida: sobressalente no vazio da área gigantesca, estava desenhado no chão um espaço de uns 6 metros quadrados, onde se acotovelavam umas vinte pessoas, fumando, debaixo de enormes extractores que aspiravam uma coluna giratória de fumo como um tornado no meio de uma pradaria arejada.

Este episódio coincidiu com a renovação das instalações do Expresso na Duque de Palmela, quando o Desporto e a Economia passaram do 3.º andar fumegante para um rés-de-chão renovado e à estreia. Com o poder que o cargo me conferia, decretei livres de fumo três das quatro salas e o corredor da nossa secção, deixando a remanescente cumprir a função do quadrado-chaminé do aeroporto de Denver, para os inveterados dos charutos, cachimbos e cigarros sem filtro, grandes companheiros e amigos José Pereira, Daniel Reis e Francisco Rosa.

A proibição e o exagero do afrontamento, contra o fumo e contra o cheiro, são fundamentais para o sucesso do ex-fumador, sobretudo nos primeiros dias, semanas, meses, nos primeiros dois anos até nos sentirmos completamente livres.

Creio ter sido a primeira zona de não fumadores da história da imprensa portuguesa, acompanhada primeiro pelos vizinhos da Economia liderada pelo Virgílio de Azevedo e, mais tarde, por outras zonas da empresa.

Anos mais tarde, voltei a abusar do poder impondo a mesma lei nas instalações renovadas do Record no Bairro Alto, afrontando o saudoso diretor Rui Cartaxana, de cujo gabinete fugia a sete pés, por causa do odor a Gama de cachimbo.

Isto tudo passou-se nos últimos 30 anos. Hoje, ninguém fuma no trabalho, nem nos jornais nem nas outras profissões, porque a mais eficaz das medidas anti-tabágicos, agora novamente em cima da mesa legislativa, é mesmo a redução drástica dos locais onde se pode cometer este acto de insana estupidez.  

Se é fundamentalismo, sejamos fundamentalistas.

 

FOTOS: do fumador idiota e da recordação do dia do último cigarro

EFABLAÇÃO (27)

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- Mota, Manel, este mano não está bem da mona, chamou-me mono! Mano, ele chamou-me mono!”

Diz que foi mais ou menos assim, respeitosa, esclarecida e educadamente, que Kepler Ferreira, “el Pepe”, se dirigiu ao árbitro açougueiro de Vila Verde, no relvado do draconiano monopólio das boas maneiras e do civismo desportivo onde o Macaco é líder.

Foi através de um jornalista brasileiro que é uma das referências do monótono comentário futebolístico da atualidade, de apelido Andrade, que tomei conhecimento desta tentativa de “monocaute”, num daqueles golpes baixos encenados em que a luta livre parece tão real e verdadeira como os trambolhões de Taremi se assemelham por vezes a penaltis.

O racismo é um problema muito grave e justifica toda a atenção e repressão, mas procuremos entender este caso: Pepe nasceu no Brasil, Colombatto na Argentina, ambos são imigrantes em Portugal, mas ambos são monocromáticos, indistintos, descendentes de emigrantes latinos, o que confunde e dilui o alegado desentendimento rácico.

Todavia, também não se pode considerar um caso de xenofobia porque o estrangeiro é o alegado agressor e o português a vítima.

“Mono” - queixa-se Pepe que viveu anos em Espanha - quer dizer macaco e é ofensivo. Mas é também uma alcunha comum na Argentina, distintiva de figuras pitorescas como o antigo guarda-redes Burgos, “el Mono” Burgos, ex-escudeiro de Diego Simeone.

Mas, sim, deve ser considerado insultuoso chamar “mono” a quem se recusa ser descartável e ainda se movimenta tão forte e ágil como Pepe, resistindo, aos 40 anos, a ser recolhido pelo carro-vassoura dos que perdem a energia e a iniciativa.

Etimologicamente, “mono”, do grego “mónos”, é um prefixo de composição que transmite a ideia de um, único, unidade, unitário - como “monóculo”, o que vê só com um olho, como Manuel Mota, a quem o treinador do Porto chamou de “artista”, um refinado palavrão para protestar contra as macaquices da arbitragem.

Como Pepe, um futebolista único, diferenciado, monolítico.

Mas em castelhano, “mono” também pode ser um apelido carinhoso ou irónico, um bordão útil para alocuções pessoais como “oye, mono, de que vas hablándome así?” ("ouve, pá, por que me falas nesse tom?”) - que teria sido uma opção tranquila e bem-humorada para Pepe em vez do curto-circuito monofásico e incendiário que o acometeu.

O racismo é uma praga que tem de ser erradicada da sociedade com a mesma firmeza que limpe de uma vez o futebol e o desporto de todo o tipo de macacadas e faltas de respeito. 

Mas portugueses que tratam outros portugueses como “mouros” não podem admitir que alguém lhes chame “mono” - o que tem menos a ver com a tez da pele ou com antropofobia do que com a ironia da situação? 

Colombatto não enfrentaria qualquer problema disciplinar se, em vez do insultuoso “mono”, tivesse dirigido a Pepe apenas um assertivo e elogioso “filho da puta”, “cabrão” ou “palhaço”, como soa adequado ao calor da luta entre manos boludos, cumprimentos e reverências entre machos alpha que se dizem no campo e ficam no campo.

Portanto, tivesse Colombatto sido monocórdico e o seu futuro, perante a iminente condenação pelo monoteísmo “woke”, apresentar-se-ia bem menos negro.