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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

EFABLAÇÃO (26)

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O pensamento inspirador dos pirómanos encarnados que deitaram fogo ao anel inferior de San Siro é que “as tochas são um espetáculo visual fantástico”, fazendo a apologia do “uso de pirotecnia nos estádios como parte de uma cénica essencial” - uma doutrina irresponsável a coberto de absoluta impunidade, como uma espécie de crime de cachecol, comparável ao estatuto dos delinquentes de colarinho branco que gozam de indulgência social e de negligência judicial.

Aos “adeptos” tudo é permitido, desde os insultos, as ameaças, os distúrbios, as agressões, o tráfico, o furto, a posse de armas, e, claro, o fogo posto. Dir-se-á que é apenas uma pequena parte, uma percentagem que não representa o colectivo, mas os crimes que praticam nas bancadas, ou na via pública, a caminho dos estádios, só são possíveis por cumplicidade dos adeptos “normais”. Porque estes, muitas vezes por medo, fecham os olhos aos desmandos cometidos à sua beira e, nestes casos das tochas e dos petardos, até os aprovam porque ficam bem na “coreografia”.

“No pyro, no party”, dizem os imbecis, para quem o futebol não passa de fonte de ignição para a fogueira do fanatismo tribal. 

O que aconteceu em Milão, quando a eliminação do Benfica já estava decretada, não foi um festejo, nem uma manifestação artística, foi um acto de vingança através da tentativa de provocação de danos físicos graves aos espectadores adversários da bancada inferior, ou seja, um inqualificável ataque de cobardes, protegidos pelas barreiras policiais e pelo perverso sistema das “caixas de segurança”.

Cabe à UEFA punir o Benfica com um castigo exemplar, memorável, que obrigue o clube a, finalmente, tomar medidas drásticas e apropriadas à associação de malfeitores que vem acobertando há décadas sob o pretexto falacioso de não ter claques “oficiais”, ou grupos de adeptos, ou bandos de incendiários, ou lá o que sejam estas hordas de energúmenos.

Foi assim, com a interdição dos clubes ingleses às competições continentais, que há mais de 30 anos se interrompeu a vaga criminal dos “hooligans” ingleses e se construíram as bases da Premier League, como pináculo de segurança e imagem positiva do desporto-espectáculo da era digital, enterrando para sempre as memórias terríveis do futebol dos homens das cavernas.

Passaram algumas horas, nem Benfica, nem Liga, nem Federação, se manifestaram sobre este grave incidente - quem cala consente. 

Mas serão, certamente, enérgicos a protestar quando se conhecer o castigo sumário que a UEFA prepara - consequência da “síndrome de Estocolmo” que invariavelmente acomete as vítimas dos sequestradores das bancadas.

 

Foto zerozero.pt

16 Abr, 2023

Roger and out

EFABLAÇÃO (25)

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Fim do voo do “Águia 38”, missão cumprida, o piloto pousa os comandos, vai desligar as comunicações, ouve a última indicação da torre de controlo e suspira o derradeiro “Roger and out”. 

Esse parágrafo estava “reservado” para uma semana de Maio no caderninho de trocadilhos oportunos dos fazedores de manchetes da imprensa desportiva. Seria um epílogo poético para a extraordinária época do Benfica de 2023, uma variante aeronáutica ao estafado “Rogerball”, uma forma irónica de encerrar uma batalha tão definitiva como a despedida triunfante de um piloto de Spitfire depois de mandar abaixo meia dúzia de Messerschmitts.

“Roger and out” - o que parecia adquirido, tranquilo e antecipadamente festejado há poucos dias transformou-se subitamente em “looping” turbulento a puxar a nave encarnada para uma queda livre - a angústia pavorosa de antever o que seria um final feliz transformar-se num voo picado de “kamikaze” a ameaçar despenhar-se numa crise inexplicável, num “Roger e rua!” 

A expressão nasceu da letra R, de “resolvido”, nos primórdios da aviação como código de comunicação para pilotos e controladores de línguas diversas. Embora a fonética correta do alfabeto militar seja “Romeu”, o “Roger” é muito mais utilizado, por mais expressivo e pungente. “Roger and out” traduz melhor uma saída tranquila, mesmo em caso de melodramática chicotada psicológica, do que um “Romeu" shakespeariano, patético e lúgubre.

Por exemplo, para os benfiquistas em controlo do campeonato, “Roger that” significava ok, entendido, fim de conversa, siga para o Marquês.

Quando se diz que a linguagem do futebol é universal, para exprimir que um treinador não precisa de falar português para ser bem entendido por qualquer jogador, dirigente ou adepto, dentro e fora das quatro linhas, é bem claro que significa ganhar, fazer ganhar e saber ganhar. 

E enquanto ganhava, Roger Schmidt era brilhante, fantástico, inquestionável, falava muito bem inglês. Agora, após três derrotas, parece uma caricatura com sotaque.

Na memorável ficção ”Alô Alô” havia um personagem chamado Roger, Roger LeClerc, um agente clandestino que se disfarçava toscamente em cada episódio mas sempre se denunciava dizendo, “sou eu, o Roger”, não fosse algum dos camaradas não o reconhecer e tomá-lo por inimigo. 

Ora,  este Roger “Herr” Schmidt, disfarçado de piloto errático da dramática “pièce de résistance” que é a fase final de uma época de futebol, após uma longa sequência de batalhas terrestres e aéreas nos campos de Portugal e da Europa, também encarna um personagem irreconhecível, ausente, mesmo no ponto para ouvir a célebre sentença de uma qualquer Michelle da Resistência encarnada:

“Renè, perdão, Roger, ouve com muita atenção, só vou dizer isto uma vez: 

Alfa-Charlie-Oscar-Romeu-Delta-Alfa”.

 

Foto Reuters

EFABLAÇÃO (24)

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Portugal perdeu um lugar nas provas europeias de clubes e foi despromovido para a terceira linha de importância na Liga dos Campeões - mais um duro golpe no delirante projecto de internacionalização da Liga Portugal. Durante três anos, a ameaça de perder aqueles lugares e descer na hierarquia da UEFA mereceu repetidos alertas na comunicação social, mas nada foi feito para evitar a queda para um alçapão de onde vai ser quase impossível sair.

Dois clubes, Porto e Benfica, mantiveram esforçadamente aquela posição destacada com sucessivas presenças nas fases adiantadas das provas, a que se juntou este ano o Sporting. Mas não chegou. 

Ironicamente, esta míngua da fatia do bolo da UEFA que vai ter sérias implicações nas finanças dos nossos grandes clubes, dois deles em permanente estado de falência técnica, surge no melhor ano do século em que, por pouco, não tivemos pela primeira vez três equipas nos oitavos da Champions.

Quando se pensa na solidariedade global subjacente à distribuição mais “justa” dos direitos televisivos a nível nacional, esta hecatombe europeia permite antever o que vai acontecer na Liga Portugal: reduzir o poder dos grandes para disfarçar as fraquezas dos pequenos apenas servirá para desbaratar recursos, diminuir competitividade geral e premiar a indolência.

Os clubes que querem ser ajudados a nível interno nunca mostraram qualquer ambição europeia, por contraste com os seus concorrentes da França, da Itália, da Holanda ou da Bélgica (tal como os da Rússia até ao desvario putinesco), os quais vêm trabalhando para cimentar posições nas competições intermédias e acabaram contemplados com a criação da Liga Conferência, o grande bodo aos pobres que a UEFA concebeu à medida deles, com um impacto tremendo nos rankings, mas que os nossos dirigentes fizeram questão de negligenciar. Por causa do trabalho que exige, como foi exemplo o banho de humildade a que José Mourinho e a Roma se sujeitaram na época anterior.

Dos 20 principais países do ranking europeu, apenas Portugal, Croácia e Grécia não tiveram representantes na fase de grupos, pelo que a participação de Gil Vicente e Vitória de Guimarães, em vez de somar, representou um factor de divisão e perda de significativa percentagem dos pontos que os três grandes conseguiram amealhar na Champions. A isso ainda se juntou a confrangedora participação do Sporting de Braga em duas provas ao seu alcance. 

Como na fábula da formiga e da cigarra, a falta de massa crítica da maioria dos nossos clubes para enxergarem um horizonte internacional quando há mais vagas do que nunca nas provas europeias deriva da mesma preguiça funcional que os faz invejar e reclamar das receitas desproporcionadas dos três clubes grandes. É o pensamento transferido do “direito à habitação”, por leitura enviesada das regras constitucionais: se eles têm, nós também temos “direitos”, assim mesmo, caidinhos do céu, como o obscuro “projecto de internacionalização” que preenche a retórica de Pedro Proença sempre que se aproximam eleições na Liga, sem que se lhe conheça uma ideia ou uma ação concreta.

A realidade é brutal: o direito a habitar as provas da UEFA e a receber as suas rendas milionárias conquista-se no terreno de jogo, no trabalho ético, competente e persistente. Para lá chegar, é necessário crescer internamente, desenvolver competências, investir no trabalho, alargar influência desportiva, obter resultados, construir património, aumentar e consolidar audiências. Sem ceder à tentação de saltar etapas e pretender um crescimento artificial através do usucapião dos maiores rendimentos dos clubes grandes que se pretende por via administrativa com abusiva intervenção estatal e que apenas replicará à escala nacional este anunciado empobrecimento, desportivo e financeiro, que ontem se confirmou na Europa: dividir para diminuir.

 

Foto AFP

12 Abr, 2023

O assobio da Luz

EFABLAÇÃO (23)

Captura de ecrã 2023-04-12, às 10.16.00.png

Houve uma altura na minha adolescência que sofri por não saber assobiar, por não conseguir dobrar a língua com os dedos em concha e fazer sair um silvo estridente ou usar as duas mãos aos cantos da boca para ampliar ainda mais o vibrato e colocar tudo e todos em sentido.

Os meus cães sempre respeitaram o meu pífio assobio clássico reduzido ao sopro labial, desde que consigam senti-lo, mas aprenderam a fazer de conta que não ouvem quando me sai mais vento do que som. Por isso, sei que seriam ainda mais caninamente obedientes se eu os chamasse à razão com aquele toque a reunir, entre o agudo sibilino e o grave tonitruante, versátil e expressivo como um fagote, com que Sérgio Conceição atinge os tímpanos dos jogadores mais distantes e isolados e que os faz sentir tão próximos e importantes como os que actuam à beira da “área técnica” ao ritmo do vernáculo pró-activo do seu chefe.

O assobio pode ser, pois, uma arte de comunicação para os treinadores de futebol, com diversas ordens dissimuladas no código dos toques, mais longos, mais penetrantes ou mais complexos e cadenciados como Morse. Os jogadores aprendem o significado das ordens vibrantes com o mesmo reflexo condicionado com que os rebanhos reconhecem o aviso contra predadores, o chamamento para o pasto ou o carinho da atenção nas melodias solitárias do pastor montanheiro.

Em muitas atividades humanas, o assobio é como o gesto - é tudo!

O ex-treinador do Brasil, Tite, assobiou mais de cem ordens aos jogadores durante o último Mundial, uma a cada quatro minutos de jogo, segundo as estatísticas do Globoesporte. E os jogadores, além de compreenderem os significados, conseguem distingui-las no meio de uma sinfonia de cinquenta mil cornetas humanas.

Roger Schmidt não assobia. Na verdade, percebe-se agora, na fase mais negativa do seu consulado, que nem gestos faz, que tarda em exteriorizar insatisfação ou ansiedade perante as visíveis insuficiências da equipa, à entrada das primeiras rampas da principal contagem da montanha russa que é uma temporada futebolística. Que até se baralha com o relógio e com os recursos do banco, quando se exigia um apito de chamada à terra naqueles momentos em que parece estar esquecido a olhar para lá do que devia estar a ver. 

O foleiro sibilante de Sérgio Conceição liga. A fleuma silenciosa de Schmidt desliga.

Portanto, quando o inusitado de duas derrotas consecutivas apela a toda e qualquer discussão sobre o que se está a passar na equipa encarnada e o que pode estar a falhar na sua liderança, até aqui inquestionável, os assobios não são uma questão lateral. Embora tardios, eles saíram de onde menos se esperava, das bocas e mãos que só gritavam e aplaudiam, suportando e fortalecendo Schmidt e a equipa - de entre os adeptos que se esgadanham para marcar presença nos lugares raros e caros das bancadas da Luz.

À falta do aviso sobressaltado do pastor alemão, adormecido ao luar, foram alguns adeptos do Benfica que assobiaram de medo e alarme ao rebanho tresmalhado no final do jogo com o Inter: cuidado, vêm aí os lobos!

EFABLAÇÃO (22)

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“Seis da madrugada.

A luz do dia tenta apunhalá-lo de surpresa.

Defende-se à dentada

Da vida proletária, aristocrática, burguesa.”

 

Como no poema surrealista de António José Forte, o Benfica-Porto transportou para a noite escura o benfiquista febril, assustado, perdido, sem pressa de chegar seja onde for, olhando a multidão, suavemente, com horror.

Durante semanas, meses, o sucesso inesperado do Benfica de Roger Schmidt foi associado à fraqueza ou incompetência dos adversários sucessivos. Dizia-se, como pensamento desejoso, “quando enfrentar uma equipa a sério…”

Mas a sequência de vitórias prosseguiu, disfarçando fiascos comprometedores nas taças domésticas que não chegaram para dúvidas nem angústias. O nível exibicional manteve-se alto, por vezes excelente, e o entusiasmo deu lugar à euforia, em função do inusitado avanço de dez pontos. O despertar das segundas-feiras era um poema surreal.

Ora, no dia em que se preparava para chancelar a conquista do título, o Benfica encontrou finalmente um adversário muito superior, abafador, inclemente, esmagador. E voltou a não vencer em casa um rival, como já acontecera frente ao Sporting, surpreendido, aturdido, desligado, perante um estádio da Luz à cunha - o “luar terrífico (que) vela o seu passo transtornado”, como no poema do “mano Forte”.

 

“Sonâmbulo, magnífico

Segue de esquina em esquina com um fantasma ao lado.”

 

A competitividade da equipa de Sérgio Conceição, com uma personalidade colectiva inconfundível e inimitável, de faca nos dentes e capacidade de pressão quase irrespirável, reduziu à vulgaridade jogadores e soluções que chegaram a maravilhar em muitos jogos da temporada, inclusive frente a adversários internacionais poderosos. 

O que se passou?

Na minha visão, apenas uma enorme diferença de maturidade e classe, entre o que se vê e o que se deseja, entre o real e o surreal. O meio campo do FC Porto é servido por jogadores de nível internacional, com larga experiência dos grandes ambientes, e esse “pedigree” marca diferenças: Florentino e Chiquinho, provavelmente, nunca jogarão numa seleção nacional, João Mário está na segunda linha, Rafa perdeu-se nos seus labirintos mentais, Aursnes é um epifenómeno. Todos acusam negativamente a intimidação física e a falta de espaço de manobra, a faca nos dentes aterroriza-os. 

Otamendi à parte, nenhum jogador do Benfica se sentiu “confortável” no tipo de jogo que, em menos de cinco minutos, já tinha passado de proposto a imposto pelo Porto, obrigando a quase duas horas de aflição permanente, pela insegurança competitiva, pela inferioridade física e pelo absoluto bloqueio táctico, inclusive nos minutos em que esteve em vantagem no marcador.

Não era tudo excepcional antes deste jogo, foi tudo medíocre durante o jogo, mas não estará tudo mal no futuro do Benfica - a passar de nova derrota com um candidato ao título para uma importante eliminatória na Liga dos Campeões, prova em que permanece invicto.

A equipa do Benfica melhorou muito, colectivamente, com Schmidt, mas o plantel mantém várias deficiências, para um nível de exigência mais elevado, que os resultados vêm disfarçando: um guarda-redes que ganhe pontos, um lateral direito (e outro esquerdo, se Grimaldo sair), um médio centro que dinamize o jogo e imponha o ritmo quando o adversário bloqueia o ataque rápido, dois extremos com objectividade e profundidade e um avançado que discuta a titularidade e não retire poder ofensivo quando entra em campo.

Haverá quem se limite a acreditar que foi só uma tarde má, “para esquecer”, e que os sete pontos de avanço dizem muito mais sobre a realidade das equipas do que este acidente singular. Porque o Benfica tem sido mais regular, mais eficaz, vencendo mesmo quando não convence. Mas que ninguém pense que o Porto foi e será o único adversário ”a sério” neste final de temporada tão exigente, regressando de seguida à rotina dos opositores sem facas nem dentes que atapetaram o caminho inicial da época. 

Cair na real e assumir:

 

“Pelo meu relógio são horas de matar

De chamar o amor para a mesa dos sanguinários.”

 

FOTO Joaquim Machado/ANoticia.pt