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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

HISTÓRIAS SEM INTERESSE NENHUM (5)

Nas últimas semanas, muita gente tem comparado o efeito do treinador Roger Schmidt, neste primeiro ano no Benfica, à revolução provocada por Sven-Goran Eriksson há precisamente 40 anos, não só no clube encarnado, mas em todo o meio futebolístico nacional e europeu.

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Compreendo a comparação, mas vejo muito pouca semelhança, para lá dos resultados invulgares que a equipa encarnada tem alcançado em campo: uma boa carreira nacional, não obstante os títulos prematuramente perdidos nas taças, e uma notável campanha europeia.

No seu primeiro ano, Eriksson ganhou Campeonato, Taça de Portugal e chegou à final da Taça UEFA, sofreu apenas duas derrotas (Sporting e Anderlecht) em 49 jogos, marcou 112 golos e sofreu 25. 

Curiosamente, o Benfica de Schmidt também marcou 112 golos nas 44 partidas já disputadas, só foi derrotado uma vez (Braga) e é, precisamente, pela preocupação do jogo positivo, pela intensidade ofensiva de todos os planos de acção e pela frescura física e mental da equipa, que se chegou à comparação com o sueco.

Embora os mitos nasçam do desconhecimento, o de Eriksson resultou de uma personalidade aberta. Aprendeu português em menos de três meses, teve a visão de emprestar a imagem jovial e empática a uma marca nacional e popular, concedia  entrevistas com regularidade, não escondia métodos nem soluções, tinha prazer em partilhar, acabando por fazer escola, gerando e cultivando um estilo para gerações sucessivas de treinadores, alguns dos quais foram seus jogadores na Luz, quer na primeira, quer na segunda passagem, quando voltou a conduzir o Benfica a uma final da Taça dos Campeões.

Ao contrário, de Schmidt sabemos e saberemos muito pouco e dificilmente o seu legado ultrapassará as paredes do Seixal e as parangonas das grandes vitórias. As suas curtas e circunstanciais conferências de imprensa não mitigam a sede de conhecimento dos segredos do seu trabalho, em particular o modus operandi sobre jogadores dados como “perdidos”, como Florentino ou Chiquinho, ou a exponenciação de valores estagnados, como Vlachodimos, Grimaldo ou Rafa, ou o desenvolvimento de promessas relativas, como António Silva ou Gonçalo Ramos. E o que sabia ele sobre o lado oculto de Fredrik Aursnes que os próprios noruegueses só estão a descobrir agora?

Quando chegou a Lisboa, Schmidt foi apresentado a editores e jornalistas de referência num jantar informal, uma tentativa saudável de aproximação que mereceu rancorosos comentários de rivais viciados em teorias de conspiração, doutores milagreiros e “coaches” paramentais. Depois disso, o alemão fechou-se com os seus rapazes, protegido pelo biombo dos diretores de comunicação, e o mais próximo que estivemos do seu pensamento mais íntimo foi através de uma entrevista a uma publicação germânica, na qual cometeu a heresia de equiparar o Benfica aos colossos Real Madrid e Barcelona.

Tenho simpatia pelos jornalistas de hoje, enclausurados numa agenda de rotinas, anos e anos limitados a uma pergunta por evento, segurando microfones na esperança de captar um som, um bit, um desabafo - expressões sem sentido ou contexto que possam ser postas a render uma manchete ou um “lead” creditável e comentável. Nunca sentirão a atmosfera de um balneário, de uma boleia à saída do treino em máquina de alta cilindrada, da digressão num autocarro ou num avião de equipa, de um almoço confidencial que ajudasse a entender o que os jogadores realmente pensam do treinador e como o treinador julga os jogadores, o que ouvem, o que lêem, como brincam ou, até, como se alcunham uns aos outros.

Às vezes, imagino que os comentadores da atualidade sejam como os repórteres de há 30 ou 40 anos e os veredictos que vão exarando nos seus programas diários, embora disfarçadas no bordão “eu acho que” e em “whataboutismo” primário, resultem mesmo de acesso privado ao treinador alemão de Rui Costa na mesma medida em que nós tínhamos acesso público ao sueco de Fernando Martins.

Com que outro fundamento e conhecimento de causa alguém poderia sentenciar, em Outubro, que o Benfica de Schmidt estava preso por arames e iria cair a pique quando começasse a enfrentar adversários mais fortes?

 

FOTO: Entrevista com Eriksson, a bordo do avião no regresso da final da Taça UEFA em Bruxelas (Maio de 1983).

EFABLAÇÃO (21)

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Vejo Jacques Rodrigues a sair do tribunal, o mesmo de sempre no desprezo hostil pelos jornalistas que o esperavam, mandando cumprimentos acintosos ao doutor Balsemão e ao engenheiro Fernandes, os outros magnatas da imprensa, ao mesmo tempo que me surpreendo com a primeira página de A Bola, um dos raros jornais portugueses de fabrico caseiro que conseguiu resistir durante décadas ao assédio das grandes cadeias editoriais.

O último jornal do Bairro Alto decidiu omitir um dos temas do dia, César Boaventura a fazer escorrer azeite das manchetes dos concorrentes, sobre um dos muitos processos judiciais que conspurcam a imagem periférica do Benfica. Mesmo que funcione como sedativo para os corações sobressaltados dos associados, nunca deixará de me surpreender uma tal opção editorial, exatamente 50 anos depois de Sophia escrever “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.

A identidade é o grande mistério indecifrável da relação jornal-leitor, seja pela procura da verdade nua e crua, pela busca do consolo da versão adaptada ou pela compra de uma ilusão esperançosa, como na chamada imprensa cor-de-rosa do vilão Jack Rod. O “Diário”, dos anos 80, ligado ao Partido Comunista, sintetizava este paradigma no slogan “a verdade a que temos direito” - só compra e lê quem não queira despertar para a realidade.

Assim, cada um escolhe a verdade que mais lhe interessa, elege o meio que mais o aproxima da área de conforto, movimentando-se no seu próprio mapa de “isenção”, até à fronteira geralmente delimitada pela “independência” dos outros. Nas sociedades realmente livres e evoluídas, os meios de comunicação identificam interesses, assumem cores e consentem alguns laivos de propaganda, procurando eliminar à nascença qualquer apriorismo ideológico (ou clubístico) para evitar enganar os leitores.

Trabalhei como editor para aqueles três xoguns da imprensa, nas suas áreas desportivas, e ingressei no jornal A Bola no mesmo dia que o seu atual diretor, João Bonzinho, além de ter sido colega do seu diretor-adjunto, José Manuel Delgado. Também trabalhei numa empresa pública, a agência noticiosa dirigida por um futuro “cartilheiro” do Sporting, e numa televisão privada com um diretor-geral que chegou a vice-presidente do Benfica.

Desta minha experiência, sem esquecer o benfiquista Joe Berardo, sem dúvida, o melhor patrão de comunicação social que conheci, guardo inúmeras histórias de pequenas ingerências, sugestões subliminares ou recados descarados, mas sempre achei que eram os jornalistas, em particular os editores, os mais “perigosos” para a verdade desportiva impressa, com cada vez menos força para resistir.

Disse-me muitas vezes o saudoso Aurélio Márcio, companheiro das manhãs na travessa da Queimada e de um inesquecível Mundial de Itália, que “jornalista não tem clube”. Eu ria-me e respondia-lhe: “tem, tem, mas não pode trocar uma notícia por um resultado”.

Ao reduzir a uma breve de última página uma notícia que é manchete dos outros dois jornais desportivos e tem chamada na 1.ª dos dois principais diários, A Bola expressa uma clara opção editorial, indo ao encontro da mais larga e tradicional base de leitores, os benfiquistas, ungindo o sono tranquilo da massa associativa, enquanto a SAD, o clube e os dirigentes que emparceiravam com Luís Filipe Vieira vão conseguindo escapar entre as vírgulas da chuva de processos judiciais.

Vociferava o poderoso J.R. dos tempos da garagem de Queluz de Baixo para o jovem estagiário, meses antes de lhe ficar a dever para sempre dois ordenados: “Esta capa tem pouco verde. Ó Capela*, você trouxe-me pr’aqui um vermelho!”


*António Capela, grande fotógrafo e grande sportinguista, meu “padrinho” profissional.

HISTÓRIAS SEM INTERESSE NENHUM (4)

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Segunda-feira de manhã, na televisão, pivôs anunciam com entoação de quem descobriu a pólvora que os produtos IVA Zero serão Frutas, Legumes, Pão, Laticínios, Ovos e Azeite, Massas e Arroz, Peixe gordo e Carne de Frango e de Porco. Para não correrem o risco de serem desmentidos, citam Luis Marques Mendes ou Paulo Portas, os Comentadores Oficiais da Nação (CON), espécie de Especuladores autorizados e encartados.

Para um ex-jornalista primário, habituado a escarafunchar informação credível e a tentar esgotar qualquer hipótese de erro, resulta em semanal reforço de rejeição este novo processo “informativo” que consiste em legitimar a invenção benigna - que a realidade acabará por esfumar, confirmada ou desmentida pelos factos - sem recurso a contraditório, fontes reconhecidas ou testes de credibilidade.

Quando procuram explicações para a rejeição dos leitores e espectadores e para a queda das vendas e das audiências para níveis residuais, os gurus da informação ignoram sistematicamente esta vertente perversa dos conteúdos gerados nas centrais de comunicação, onde se fabricam presidentes, da República às Juntas de Freguesia, passando pelos clubes de futebol. 

Os jornalistas perderam o acesso directo às cozinhas do poder e alimentam-se agora das migalhas que caem da mesa dos CON de ocasião - também implantados nas áreas do futebol, da economia e da geopolítica -, ditando agendas de sementeira de dúvidas e de plantação de polémicas como quem publica um Borda d´Água de costumes. 

Como é que demorou uma semana, até às conversas em família dos domingos à noite, para se “revelar” que os produtos sem IVA iriam ser Frutas, Legumes, Pão, Laticínios, Ovos e Azeite, Massas e Arroz, Peixe gordo e Carne de Frango e Porco? 

Como é que os assobios ao João Mário derivaram para uma discussão estéril, quase imoral, sobre amor e desamor pela selecção, quando o que estava em causa era apenas a insensibilidade inesperada de um treinador estrangeiro recém-chegado ao país das nações clubísticas?

Lembro-me do momento e do local onde nasceu este culto da pregação do correcto e do cancelamento do escrutínio, de como a falta do pãozinho noticioso deu lugar ao comentário “gourmet”.

Foi numa das torres das Amoreiras, onde o Fernando Correia, o José Manuel Freitas, um sócio do FC Porto e eu esperávamos que vagasse o estúdio de rádio para gravarmos o primeiro programa com adeptos de clubes, quando de lá de dentro saiu o Professor, acabado de atribuir as suas primeiras notas semanais a políticos e simpatizantes. 

Emídio Rangel e os seus adjuntos trocavam sorrisos como se tivessem, finalmente, encontrado o filão do ouro no seu persistente garimpo por uma TSF inovadora e influente: “Muito bom, o homem é muito bom”, repetia o Carlos Andrade, depois das despedidas ao então Professor de Direito e precursor dos “influencers” políticos da era antes da internet, Marcelo Rebelo de Sousa.

Estavam reinventados, à escala mediática, os “comentários” de alcance profético, sobre a razão política, a ética financeira, a moral desportiva, a qualidade literária ou o preço das cebolas.

Nos trinta anos que passaram, os programas de comentadores adoptaram e refinaram o lema do Borda d’Água original de divulgar repertórios úteis, chamados de “conteúdos”, sem os quais não se imagina ser possível sobreviver, como caraterizou Miguel Esteves Cardoso em “A Causa das Coisas”, no lugar das notícias puras e simples. 

Se os CON da política proclamam “urbi et orbi” a lista dos produtos de primeira necessidade que nos vão salvar, com a pompa e orgulho de quem está a erradicar a fome; se os CON da bola impõem tendências e condicionam paixões, como quem moraliza o fundamentalismo - tal só é possível porque os editores deixaram de o ser.

Os meios de comunicação dos nossos dias vogam ao sentido da corrente, rezando pela concretização das profecias destes Nostradamus de estúdio, à mercê das etéreas luas e marés do audiovisual.

EFABLAÇÃO (20)

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Se Roberto Martinez fosse português, provavelmente, não teria feito entrar João Mário em campo a um minuto do fim, em pleno estádio do Sporting - a menos que quisesse humilhar o jogador.

A falta de respeito, ingratidão e clubite de que se queixou o presidente da Federação a propósito deste incidente talvez não sejam sentimentos do cardápio formativo do novo seleccionador de Portugal, não obstante ter nascido na Catalunha com azia inata contra o Estado castelhano.

Humilde, Martinez diz que está a aprender, a conhecer os jogadores e tem muito poucas e extremamente fugazes oportunidades para descobrir e adoptar ou adaptar.

É interessante ter um treinador estrangeiro que se esforça por aprender português. É curioso ter um líder oriundo de um país de várias nações e com um hino sem palavras a procurar cantar os versos da Portuguesa, mesmo sem base cultural para entender o silogismo entre a heróica e nobre valentia e a sabedoria dos egrégios antepassados, a vitória das “armas” sobre os canhões - esse imortal complexo de inferioridade que nos agiganta.

Roberto Martinez não fazia ideia de que João Mário, o melhor jogador da época em Portugal, era “persona non grata” no “José de Alvalade” e um alvo potencial da frustração clubista que divide o país. E ninguém teve o cuidado de lhe explicar, apesar de a Federação ser hoje um retiro dourado para dezenas de ex-jogadores, a começar pelos adjuntos portugueses que elegeu, Ricardo Carvalho e Ricardo Pereira, que conhecem este assunto a fundo, através de experiências pessoais extremas.

O espanhol aprendeu assim na primeira aula que, em Portugal, um ex-capitão de um clube pode transformar-se em “maçã podre” ou em “traidor” como quem troca de camisa e que a identidade dos clubes é primordial relativamente à da equipa nacional. Já acontecera com João Moutinho, que tinha um passado idêntico e cometera um pecado semelhante, “defraudando” valores materiais e sentimentais aos olhos dos sportinguistas, mas o grau de intolerância sobe em função da cor do clube beneficiário e, eventualmente, também da tez da pele.

O lado “social” deste episódio com João Mário é, apesar de tudo, menos importante do que o “desportivo”. 

As múltiplas observações que o espanhol pareceu andar a fazer nos estádios portugueses levaram-no inexplicavelmente a adoptar uma solução táctica igualmente contra-natura, inédita em seleções de Portugal, e a deixar fora da equipa inicial alguns dos jogadores mais determinantes dos jogos a que assistiu, a começar pelo próprio “patrão” do Benfica actual.

Roberto Martinez assume o compromisso de levar a seleção à final do Europeu, num percurso em que defrontará 80 por cento, ou mais, de adversários claramente mais fracos, através de um dispositivo inflacionado de defesas, meio travestidos em jogadores de pressão, mas pelo sacrifício de unidades decisivas no ataque, como Gonçalo Ramos, Diogo Jota ou Rafael Leão. 

Depois de falhar uma gestão emocional básica, obrigando a cúpula federativa a sair do seu silencioso sepulcro para sanar o mal-estar criado, e expor-se inexplicavelmente com uma proposta de futebol para equipas pequenas que vai demorar a ser assimilado por jogadores e adeptos - só pode melhorar. 

Pelo menos, terá entendido a charada sobre a liderança que se propõe cantar antes de cada jogo, igualmente uma metáfora para o futuro de João Mário: das brumas das más memórias ao esplendor das grandes vitórias. 

23 Mar, 2023

Lufada de ar fresco

HISTÓRIAS SEM INTERESSE NENHUM (3)

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Diz Cristiano Ronaldo que o novo seleccionador nacional, Roberto Martinez, representa uma “lufada de ar fresco” no seio da selecção portuguesa depois dos tempos de ar quente de Fernando Santos.

Nunca um só jogador, dos cerca de cem que passaram pela equipa nacional nos últimos oito anos, se queixou do ambiente. Pelo contrário, aquilo era uma “uma espécie de lar, uma família no bom sentido da palavra”, segundo a descrição do próprio treinador, há alguns meses, antes do Mundial.

E há três anos, na última entrevista que concedeu a uma televisão portuguesa, embora um dos entrevistadores não fosse jornalista, já Cristiano Ronaldo tinha realçado que "o ambiente na seleção é espetacular”, graças a Fernando Santos e ao presidente da Federação, Fernando Gomes, os cérebros da solução FEMACOSA.

E agora, em dois ou três dias de vivência e dinâmica revigoradas, as coisas estarão ainda melhores, um arzinho fresco que embala a selecção na sua ligação com o noivo espanhol, contrariando a ancestral maldição que a desaconselharia: nem bom vento, nem bom casamento, diziam os sábios.

A saída do anterior seleccionador só pecou por tardia, pelo que, fosse quem fosse o sucessor, a mudança seria sempre esperançosa. Martinez vem de uma experiência interessante à frente da selecção da Bélgica, os jogadores são bons, as condições são óptimas - é fácil prognosticar mais uma campanha positiva, uma velocidade de cruzeiro garantida pela sequência geracional que injecta sangue fresco e talento renovado em cada ciclo.

Ou seja, o que era espectacular continuará a ser espectacular. O que era uma família continuará a ser uma família. E os jogadores que, segundo os jornalistas, estariam “fartos de Cristiano Ronaldo” no Mundial do Qatar continuam todos na seleção…

Sempre que ouço a expressão “lufada de ar fresco”, para definir aquele “não sei explicar” que se sente mas não se vê, como diz Cristiano Ronaldo, ocorre-me que o “fresh air” é um dos maiores pesadelos dos praticantes de um desporto que é uma metáfora da vida, entre o que se sonha e o que se alcança, a ficção e a realidade, o golfe. 

“Fresh air” é quando o taco passa pela bola, sem a tocar ou mover, uma pancada virtual que se contabiliza mas não se aproveita, uma espécie de “pontapé na atmosfera”, a tal “lufada de ar fresco” que representa a mudança necessária para que tudo fique na mesma.

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EFABLAÇÃO (19)

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Diz-me o que invejas, dir-te-ei que espécie de Putin és.

Vivemos na era em que o exercício do poder - seja pela invasão de propriedade seja pela imposição da vontade de quem manda, devidamente legitimado por eleições e éticas republicanas - deriva invariavelmente para o totalitarismo.

Esta semana ouvi o diretor executivo da Liga Portugal declarar que a centralização dos direitos de televisão é um caso encerrado, cabendo à sua organização e à Federação tomarem conta da propriedade “devoluta” dos gigantes e distribui-la em tranches democráticas pelos pigmeus a fim de poderem todos viver felizes e competitivos.

A fórmula de distribuição milagrosa para cumprir o princípio de que ninguém ficará a perder é um mistério guardado nos gabinetes destes génios das quadraturas circulares que nasceram com o desígnio divino de por e dispor da vida dos outros. Intitulam-se democratas, porque terão ganho uma eleição em algum ponto dos seus percursos de tiranetes.

Tiago Madureira diz que a centralização não será feita à Robin dos Bosques, tirando aos ricos para dar aos pobres, uma vez que prevê um aumento de receitas globais, completamente irrealista, e que todos ficarão a ganhar. Este pensamento é extraordinário: numa actividade em que 15 por cento dos clubes detém 95 do mercado, que espécie de distribuição poderá ser feita sem que os grandes abdiquem de parte significativa das suas parcelas para salvar os pequenos? Só por solidariedade benemérita, uma espécie de “fair play” à força, completamente oposta aos princípios da competitividade desportiva e impaginável com a ética do desporto profissional, se pode conceber uma solução para este capricho de dirigentes cavalgando o poder das bases, como aprendizes de Infantinos. Não tarda estarão a decretar a proibição de ganhar por mais de dois golos de diferença ou a castigar com substituição forçada à Guardiola qualquer jogador que se arme em Earling Haaland a humilhar os mais desfavorecidos do talento.

Na perspectiva destes dirigentes há uma audiência excessiva de determinados clubes que devia ser encaminhada para os que a têm defeituosa - transferir as enchentes de entusiasmo da Luz para os velórios semanais das bancadas vazias do resto do país, cortar a largura de banda dos jogos do Benfica e colá-la ao “streaming” capilar do Portimonense.  

Em nome da felicidade geral, um mirífico bem maior, nada como usurpar para resolver. Falta-nos o mar do sul, invade-se a Crimeia. Os impostos não cobrem uma velhice à francesa, sobe-se a idade das reformas. Não temos assoalhadas que cheguem, ocupa-se as do vizinho. O navio mete água, afoga-se a guarnição. Faltam-nos brioches, comemo-vos os papo-secos.

Seja qual for a fórmula de repartição de direitos televisivos em Portugal, o Benfica ficará sempre a perder e parece-me uma estratégia completamente errada tentar iludir e rodear esta condicionante, ao mesmo tempo que se protege e incentiva a “guerra dos cachecóis” que consiste em tentar esconder nas bancadas tingidas de vermelho a esmagadora popularidade do clube que nasceu pequeno, como qualquer outro, numa farmácia de Belém.

Enquanto não mexe uma palha pela melhoria do jogo, dos espectáculos, da verdade desportiva e com o país a descer no ranking europeu, preso pelos arames das conquistas pontuais dos mesmos de sempre, a Liga diz que serão os clubes a decidir a fórmula de distribuição, que será a maioria dos pequenos a decretar o tamanho das fatias dos grandes. Uma espécie de reforma agrária dos relvados, uns “direitos” assentes no ódio pelo sucesso alheio e na vertigem do enriquecimento súbito, que, como a História nos ensina, não deixará de descambar, por fim, em pobreza maior.

 

Foto record.pt

HISTÓRIAS SEM INTERESSE NENHUM (2)

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“Você não é o meu pai”.

Dos milhões de frases fortes que terei ouvido a grandes desportistas ao longo da minha vida, esta é das poucas que se me gravou no cérebro, sintetizando em meia dúzia de palavras o pensamento holístico sobre quem é, o que pensa, o que motiva, o que relativiza e o que representa a personalidade de um campeão olímpico.

Na véspera, naquele inesquecível 21 de agosto de 2008, tinha sido encarregado pela organização dos Jogos Olímpicos de Pequim de conduzir Nélson Évora, em traje de cerimónia e pronto para receber a sua medalha de ouro, no dia seguinte, a determinada hora, à antecâmara do pódio do estádio Ninho de Pássaro - e fiquei fiel depositário do respectivo salvo-conduto.

Com a hora a aproximar-se na Aldeia Olímpica, sem sinal do campeão, que fora “raptado” por amigos e patrocinadores para actividades comerciais, vivi momentos de grande stress, aterrorizado pela perspectiva de falhar a importante missão, por irresponsabilidade alheia. Aquela hora foi a mais difícil de cinco anos de trabalho olímpico, mas ao soar do “gong” ele lá apareceu e ao ouvir o meu “f***-se, Nélson”, respondeu-me com aquele k.o. verbal que me trouxe de volta à terra.

“Você não é o meu pai”.

“Pois não, não há pai para ti, meu campeão!” - foi o que respondi entre dentes.

Ainda a cambalear, recompus-me do golpe e tomei conta da operação como se nada fosse. Chegámos a tempo, ainda pudemos confraternizar com outro português, Jorge Salcedo, diretor da competição e um dos profissionais mais subaproveitados do desporto português, na antecâmara dos medalhados, saboreando a “azia” do segundo classificado, o inglês Idowu, e o Nélson recebeu a medalha, ouviu o hino e entrou formal e definitivamente na História Olímpica.

O meu trabalho continuou, nos múltiplos contactos com jornalistas de todo o mundo, na manhã seguinte levei-o a uma das raras entrevistas globais da CCTV durante os Jogos (apenas um atleta por dia tinha essa distinção) e separámo-nos, por fim, dias depois, com uma derradeira conferência de imprensa no aeroporto de Lisboa. 

Passaram quase 15 anos e a erupção do vulcão adormecido desde que Pedro Pichardo tomou o lugar dele no Benfica, na lista de recordistas e na galeria de campeões, ameaça reduzir a cinzas todo um património de prestígio e referência que ambos construíram com muito trabalho e dedicação, em nome de um país que os acolheu como filhos dilectos.

Esta eclosão de rivalidade doentia, com laivos de xenofobia, deixou-me mais combalido e impotente do que aquele episódio de Pequim: o Nélson Évora estava (ainda está) no meu Olimpo de intocáveis.

Em cima disso, o aparecimento do papá-treinador de Pichardo, a lembrar aquelas zaragatas de pais nas bancadas dos jogos de iniciados, não veio ajudar a suster os efeitos telúricos deste choque de titãs e sublinha a desvantagem em que Nélson ficou quando, após os Jogos do Rio de Janeiro, decidiu abdicar do seu treinador de 25 anos, o discreto e tranquilo professor João Ganço, que o considerava como um “bom filho”.

Neste caso, Nélson e Pedro, estamos todos de acordo que “não há pai para vocês os dois”: resolvam lá isso como campeões! E como portugueses, fiéis e orgulhosos depositários da nossa bandeira e da nossa honra.

09 Mar, 2023

Em cima do muro

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EFABLAÇÃO (18)

Se o Benfica tivesse tido sucesso desportivo no final do século passado, João Vale e Azevedo ainda seria presidente. E, depois dele, também Luís Filipe Vieira se teria mantido imperturbável no comando se não tivesse calculado mal a época do pentacampeonato falhado - e Rui Costa, seu fiel escudeiro, ainda hoje estaria mudo e quedo.

A irracionalidade do futebol, que muitos insistem em chamar de “indústria” e outros de “negócio”, confina à conquista do título em cada época o resultado positivo de uma gestão, que tudo permite aos detentores do poder, à revelia das boas práticas administrativas, desde o silenciamento da razoabilidade a que se assiste no Benfica até à infame colecta de prémios de desempenho com que se vêm locupletando os dirigentes do FC Porto. 

Se a equipa de futebol ganhar, vale tudo. Roger Schmidt e Sérgio Conceição deviam ser designados como verdadeiros CEO, pois é das decisões diárias deles que depende a estabilidade e a prosperidade dos dirigentes parasitas.

Rui Costa aprendeu durante décadas esta arte de permanecer presidente até à eternidade: acertar no treinador, uma espécie de roleta russa da sobrevivência que até Vale e Azevedo esteve perto de atingir com a “bala dourada” de José Mourinho, e ficar sempre em cima do muro perante temas fracturantes que possam “perturbar” o balneário - o célebre axioma futebolístico “em equipa que ganha não se mexe”.

No Benfica, graças a Roger Schmidt, deixou de haver auditoria, estatutos, oposição, para dar lugar a festa permanente, expectativa crescente e orgulho incontinente.

“Todos unidos” - é o longo abraço familiar que inclui suspeitos e, até, condenados que lesaram, em primeira instância, o próprio clube. A família, inebriada pelo sucesso, perdoa quem a rouba indecentemente porque os “verdadeiros benfiquistas” são os que não se preocupam com nada mais do que as “reservas” do Marquês de Pombal.

Mas não há bela sem senão: aproxima-se uma tomada de decisão que não lhe permite permanecer em cima do muro, a famigerada centralização dos direitos televisivos, por força de lei, que mais não é do que um ataque corporativo, quase uma declaração de guerra. 

E, agora, Rui Costa? Ou isola o Benfica e satisfaz o desejo dos associados, ou satisfaz os parceiros e a opinião publicada e se isola num poder fragilizado, ficando ainda mais à mercê dos resultados desportivos.

Foto ojogo.pt

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O Boavista pôs à venda bilhetes a um euro para o jogo de ontem com o Arouca. Nas bancadas, estiveram 4689 pessoas (17% da capacidade), abaixo da média inflacionada pelos jogos com os três grandes já realizados no Bessa.

A iniciativa do marketing axadrezado não foi promoção nem saldo, foi o preço desesperadamente justo para atrair algum público desapaixonado a um espectáculo de reduzido interesse. E teve a resposta expectável, porque a massa crítica não surge de geração espontânea: a um assinante que veja um jogo por dia na “pay tv” seria mais barato ir ao estádio do que ficar em casa a ver na pantalha.

A única perspectiva interessante deste episódio é que o Boavista, pelo seu presidente, lamentara dois dias antes receber menos de metade dos clubes grandes em matéria de direitos de televisão e advogara uma “melhor divisão das receitas televisivas”.

Isto é espantoso - e transversal a praticamente todos os clubes, à excepção dos tais grandes e, em menor dimensão, do Vitória de Guimarães.

A ideia de que, recebendo mais dinheiro, os clubes pequenos, com reduzida implantação social e recursos limitados, se tornam mais competitivos e populares, pujantes mesmo, redunda em falácia ridícula, como um impossível milagre das rosas que transformasse estádios construídos numa escala megalómana, por causa do Euro-2004, em pontos de eufórica romaria semanal dos fiéis do São Futebol.

Quem é que estes dirigentes querem enganar?

Numa semana fecham as bancadas aos seguidores da principal equipa do campeonato, dispostos a pagar 30 vezes mais do que o “euro-ticket”, na outra aparecem nas redes sociais a apelar à força de adeptos distantes e indiferentes para um emocionante confronto entre 8.º e 6.º da palpitante Liga Portugal.

Na Premier League, o Boavista-Arouca corresponderia a um Brighton-Liverpool e teria 31.645 espectadores, com as entradas avulsas reduzidas a dez por cento da capacidade do estádio Amex, ao preço mínimo de 150 libras (170 euros, 170 vezes um bilhete para o Bessa).

Foto A Bola

02 Mar, 2023

Todos no mesmo saco

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No dia em que o presidente da Liga admitia a antecipação da centralização de direitos televisivos, o responsável pela operação era formalmente acusado pelo Ministério  Público de graves crimes contra o património do Benfica e contra o Fisco, no âmbito de uma investigação sugestivamente denominada de “saco azul”.

Sim, a Liga Portugal entregou a um dirigente suspeito de fraude fiscal e falsificação de documentos a tarefa de executar um mandato decretado pelo Estado. E escolheu o gestor dos direitos individuais do Benfica para regular a política de direitos coletivos dos seus adversários.

Atenção: nada disto é ficção, nada disto é piada, quando o assunto são milhões cabem todos e todas as cores no mesmo saco.

O nirvana da centralização de direitos como cura para as patologias da arbitragem, da disciplina, da violência, da cultura de ódio e da desonestidade desportiva da maioria dos agentes, remete para uma comparação recente do regabofe do VAR lusitano com o rigor impecável do VAR inglês. 

Para chegar a uma maior justiça distributiva das receitas televisivas, que assente em modelos desportivo e competitivo sólidos, a solução está sempre nos exemplos de organizações fantásticas, montadas a partir de novos alicerces sobre escombros de descrédito, como aconteceu na NBA, na Premier League ou na própria UEFA, que renasceram de crises gravíssimas: primeiro, extirpar, limpar, reorganizar, consolidar e sistematizar. Só depois facturar. 

Mas da Premier League só se inveja o sol na eira - o dinheiro que escorre dos direitos televisivos, a transparência lapidar do espetáculo ou a excomunhão sumária de árbitros sem categoria e de primatas das bancadas. E sem o desconforto da chuva do nabal - chatices impopulares como a erradicação do vandalismo, a dureza implacável dos regulamentos sem direito a recurso nem providenciais expedientes dilatórios, a política de bilhética com respeito pelos adversários (e seus adereços) ou a defesa intransigente de uma comunicação positiva e responsável.

A Liga portuguesa visa a grandiosidade, quase megalomania, da “internacionalização” e da “indústria do entretenimento”, mas não mexe um dedo contra a descredibilização diária por actos e omissões de agitadores profissionais contra a honra desportiva, alguns com décadas de malfeitorias acumuladas. Pedro Proença soma sucessivos mandatos de inércia e indiferença pelas verdadeiras razões dos problemas agravados do futebol português de clubes e não adianta qualquer ideia para resolvê-los, escondendo-se atrás de folclóricos planos estratégicos de obscuros consultores contratados, como, de resto, já tinham feito os antecessores. Empurrando com a barriga, responsabilizando os clubes pela dinâmica de caranguejo da sua gestão centralista, ou anunciando mudanças para que tudo fique como está.

Nada faz sentido do que transpirou da “Cimeira dos Presidentes”, em que os responsáveis dos emblemas principais entraram mudos e sairam calados. 

Apenas se percebe que os pequenos querem receber mais dinheiro por conta de transmissões televisivas que ninguém vê. E que os médios querem receber mais dinheiro por conta de transmissões televisivas em linha com o cada vez mais baixo número de espectadores que conseguem atrair aos seus estádios. E que os grandes não abdicam de direitos adquiridos como consequência de um desequilíbrio mediático que perdurará por longas décadas.

Esta quadratura de círculo também não é anedota. Ela condiz com a inspirada escolha do CEO de uma televisão centralista, como a do Benfica, para dirigir o processo de descentralização e salvação da pátria. Quando se trata de dinheiro, o lema é: todos no mesmo saco.

Foto Record