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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

“50 Cent, how it feel to rob an industry nigga?

So we rob and steal so our ones can be bigger”

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O “rapper” 50 Cent diz que a sua música de lançamento, “How to Rob” (“Como roubar”), escrita em homenagem a um bandido de Brooklyn, N.Y., conhecido por essa alcunha, devia ser entendida como uma piada e não como uma ameaça, tentando adoçar o azedume que provocou na concorrência.

É impossível não me remeter à crueza lírica do poeta nova-iorquino sempre que assisto ao esforço de árbitros talentosos para apresentarem enredos controversos, mal acompanhados ao ouvido pela música desafinada do VAR de ocasião.

A Realidade da Arbitragem Portuguesa (RAP) é também uma piada, obscena e sem graça, mas igualmente uma ameaça. O fosso que vai cavando entre a realidade e a ficção das competições expressa-se semanalmente na divergência entre os que ocasionalmente se  aproveitam dela e os que abominam serem circunstancialmente prejudicados, numa cacofonia histérica e imperscrutável, uma babel suburbana onde ninguém se entende - como no roteiro da violenta guerra verbal entre os “rappers” de Nova York.

Há quem defenda que a arbitragem do futebol é boa se o árbitro acertar 95 por cento das decisões e que devia louvar-se tal proeza em vez de contaminar o ambiente mediático e a esfera desportiva com queixas e insídias a respeito da margem “residual” de erros. A questão insanável é que a justa avaliação da gravidade de um erro de um árbitro pode ter uma latitude tão vasta como a diferença de peso entre uma moeda de 5 cêntimos e outra de 50: quem sofre é quem acredita.

Por isso, julgo ser a margem de asneira, involuntária ou provocada, que as autoridades continuam a permitir a razão de todos os problemas de credibilidade do futebol nacional, de que os árbitros e os dirigentes são os parentes malditos. O acumulado de falhas graves, cinco por cento hoje, mais cinco amanhã, com consequências endémicas pela repercussão mediática, quanto mais alto for o nível competitivo das equipas, devia gerar passos atrás na carreira dos juízes, um pouco como o sistema de pontos das cartas de condução.

Um árbitro que faça o que se viu esta semana nos jogos de uma fase adiantada da Taça de Portugal não devia poder voltar a dirigir jogos de equipas de topo nos meses mais próximos, obrigando-se a aulas de reciclagem na respectiva escola, como é obrigatório para os relapsos do volante. Mas, pelo contrário, aposto os meus 5 cêntimos em como algum deles acabará premiado com uma excursão à final do Jamor. 

Deixar um árbitro voltar ao campo de elite depois de cometer um ou mais erros de lesa-futebol em jogos de capital importância não é piada, é uma ameaça crónica que nunca vai permitir encontrar uma solução, por pressupor a impunidade garantida por qualquer entidade superiora, mas obscura. Como nos versos de Curtis James Jackson III:

“50 cent, como te sentes ao roubar um mano da indústria?”

“Então, roubamos para que os nossos possam tornar-se maiores”.

 

08 Fev, 2023

O prazer da azia

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Do frango ao peru, passando pelo bacalhau, pelo polvo, pelo salmonete, pelo chouriço, pelo folar, pelos ovos moles, pelo pastel de Belém, pelas tripas à moda do Porto - o que não falta na crónica desportiva são alusões gastronómicas, quase sempre gostosas e remetendo para a boa disposição, tão digestiva quanto mental, de quem lia, solidariamente, sobre vitórias ou derrotas. 

O bom nome das melhores casas de pasto futebolístico foi criado de boca a boca, em passa-palavra. 

Todavia, sem nos darmos conta, os avanços da mania “gourmet” fizeram entrar no futebol falado condimentos de queimação mais difícil, pratos apimentados como fogareiros, servindo “à la carte” azias memoráveis nas mesas onde antes se degustavam opíparas receitas de bola. 

O bitoque saxónico virou francesinha, mas a azia futebolística é uma ração exclusivamente portuguesa, introduzida por um antigo árbitro que reagia mal à segunda-feira pela exposição dos seus erros de domingo, tendo evoluído de defeito para feitio. Tornou-se prato do dia na baiúca do masterchef Conceição, o primeiro cozinheiro que se ufana de ter prazer em servir refeições intragáveis, cada semana mais ácidas do que na anterior: 

“Quando ganhamos, criamos uma certa azia”. 

Vejo, ouço e leio regularmente o futebol de outros países e estou convicto de que ainda não descobriram a “brôlure”, nem a “acidez”, nem o “heartburn”, nem o “sodbrennen”, talvez por faltarem por essa Europa fora a pimenta e o vinagre que estimulam os maus fígados de alguns protagonistas do nosso quotidiano paroquial.

“Azia” - com quatro letrinhas apenas se resume, de A a Z, toda a boçalidade, destempero e azedume que caraterizam a bílis que ameaça, há pelo menos 40 anos, em fluxos e refluxos rotineiros, os princípios mais básicos da atividade desportiva, sem respeito pelos paladares diferenciados, nem pelos estômagos mais sensíveis. 

Em vez de “hoje servimos um banquete de futebol”, quanto muito um “tomem lá, que já almoçaram”, agora parece que só sentem prazer se a clientela cair para o lado a vomitar por intolerância ao ódio. 

Deixou de haver derrotados, nem mais nem menos honrosos, apenas “aziados”.

Ir ao futebol, apoiar um clube e sair insatisfeito pelo resultado não devia sobrepor-se ao prazer da experiência desportiva, apesar do indigesto “comer e calar” quando há razões para criticar os “chefes” pelas mistelas que servem.

Muitas experiências gastronómicas, pela má qualidade ou pelas doses mal servidas, podem gerar indisposições momentâneas, mas salvam-se sempre o convívio e a romaria.

Os mestres cozinheiros não perdem o seu tempo a preparar azias para os convidados, pelo contrário, queimam mãos e pestanas a engendrar menus de referência, embora nem sempre acertem e sejam vencidos pela concorrência. 

Assim, também os treinadores de futebol que se preocupam menos com o sabor dos seus pitéus e preparam os cardápios a pensar no maior grau de indisposição que consigam provocar aos comensais adversários dificilmente ganharão as ambicionadas estrelas dos Michelins da Queimada ou da Cofina. E não provam nem reprovam o caldo de acrimónia em que a sua imagem e credibilidade vão cozendo em lume brando.

Foto AFP

07 Fev, 2023

A vida continua

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Hoje acordei com remorsos por ter dormido muito bem e zangado por me sentir desconfortável com a sensação térmica de apenas 7 graus centígrados. A desgraça alheia transporta-me sempre para o verso mais invariável sobre o carácter humano: “Só estou bem onde não estou”. Como aqueles milhões de pessoas estariam bem onde eu me queixo do solinho de inverno.

Nas televisões, o alinhamento passa das imagens de pessoas desesperadas à procura de sobreviventes em Gaziantep, para as de soldados a carregar obuses prontos a matar pessoas inocentes em Bakhmut. Mesmo assim, por uns dias, a guerra brutal que a Rússia mantém em território alheio passa para segundo plano, como se fosse possível graduar a infelicidade ou interromper uma angústia para digerir outra. Como se não tivéssemos espaço afectivo para sofrer dobrado, empatia de sobra para abarcar em simultâneo tragédias singelas.

Desejava alhear-me deste incómodo.

Gostava de perorar sobre o renascimento de Chiquinho, a dimensão de André Almeida, a estreia de Chermiti, o humanismo de Sérgio Conceição, as agressões a árbitros em vários campos, as prisões preventivas de membros da quadrilha casual, a aldrabice financeira que sustenta o poder dos clubes dominantes do futebol europeu. Mas só me vem à cabeça o infeliz Christian Atsu, a vítima mais “próxima” do terramoto da Anatólia, cuja sobrevivência me ajudaria a procurar um sentido para as calamidades, quer as naturais, que os crentes aceitam como desígnios divinos, quer as criminosas, desencadeadas pela insanidade humana.

Passaram 24 horas sobre os terramotos da Turquia. Dentro de dias outra hecatombe absorverá a nossa comiseração social, a primavera fará subir os termómetros, um novo  evento desportivo despertará a nossa irracionalidade, alguém virá à pantalha virar a página com o horrível ditame “a vida continua”.

Enquanto escrevo, meios de informação credíveis, com a BBC, anunciam que Atsu foi encontrado vivo em Hatay. Como dizem, no futebol, “a vida é isto mesmo”.

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O Benfica foi o primeiro e único clube do mundo a vender dois jogadores por mais de cem milhões de euros. Até hoje, houve apenas 13 transferências acima desse valor e duas saíram da Luz.

Félix e Fernandez, gémeos imperfeitos, separados na maternidade e agora reunidos na casa adoptiva de Stamford Bridge.

Após seis meses e duas dezenas de jogos, o João português e o Enzo argentino são protagonistas do mercado internacional, tão idênticos, mas tão distintos: um de concepção natural, o outro de barriga de aluguer, um que marca passo, o outro que arrasa, um que maravilha e o outro que envergonha.

Ambos decidiram sair para clubes da segunda linha europeia e figuram hoje, lado a lado, no Chelsea, podres de ricos aos vinte e poucos anos, mas sem qualquer garantia de um futuro desportivo à altura de um valor nominal ampliado pelas circunstâncias, como soldados da fortuna sacrificados ao desígnio superior do vil metal, do qual ninguém, ninguém mesmo, consegue escapar.

Por isso, é difícil entender que a venda de Félix, pelo rei Vieira, tenha sido endeusada como uma benção e a de Fernandez, pelo príncipe Costa, seja abominada como uma praga. Que se exalte ainda hoje o soberbo trabalho de convencer os basbaques do Atlético de Madrid, mas se amaldiçoe até à eternidade a soberba preguiçosa dos novos-ricos do Chelsea.

Que se babe deleitosamente sobre cada ocasional fogacho do português pela sua imagem de marca, mas que provoque náuseas a simples associação do nome do melhor médio do mundo ao glorioso alfobre do Seixal. 

Que a um se aplauda, por excesso, a natural evolução na carreira e a outro se acuse, por despeito, de falta de compromisso. 

Que se compreenda, ao fim de quatro anos sem qualquer triunfo, a perda de força competitiva como consequência da opção de venda dos melhores jogadores, mas se julgue plausível que esse sucesso seja marginal à perda, sem acautelar a substituição, de um campeão mundial. 

A venda inflacionada de Félix deixou os benfiquistas eufóricos: “bem os enganámos”. A saída precipitada de Fernandez deixou-os furiosos: “fomos enganados”.

Félix é um filho e terá sempre as portas abertas na Luz. Fernandez, um bastardo indigno de passar, sequer, pela Segunda Circular.

É realmente incompreensível que duas situações tão semelhantes possam despertar explicações tão diversas como o “factoring” claro dos espanhóis e o “factoring” obscuro dos ingleses, que a cláusula de rescisão signifique pagamento a pronto, como num divórcio, mas possa ser a prestações por conveniência do comprador, que se tenha feito tudo para vender um e se queira fazer crer que se fez tudo para não vender o outro ou que do nível fora de série se passe tranquilamente para o nível Chiquinho, sem ofensa.

São os olhos apaixonados dos adeptos que projectam estas “diferenças”, pois no essencial nada mudou com a rotina dos mil e quinhentos milhões de euros arrecadados em exportações de jogadores ao longo deste século.

O passivo financeiro não diminui, os dirigentes e a estratégia não mudaram, o agente intermediário mantém o exclusivo, as comissões injustificadas só aumentam e a dependência de treinadores circunstancialmente em estado de graça, de Lage a Schmidt, é a bendita estrutura que mantém a casa de pé.

O Benfica continua perante o mesmo infinito e incontornável motivo que nos últimos 30 anos levou quase todos os grandes ídolos, a começar por Rui Costa, a trocarem o compromisso do coração pela sensatez da razão - a irresolúvel “equação” entre vender e vencer.

 

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Talvez seja um exagero comparar um mero relvado de futebol com os incontáveis hectares do aterro de Beirolas, um estádio com uma Sé, um espectáculo desportivo com uma missa campal, a passagem meteórica de uma estrela da bola com uma visita histórica do Papa católico.

Mas, dizem os “crentes”, benditos os milhões que os dirigentes do Benfica do começo do século decidiram investir na edificação do novo estádio da Luz, a pretexto do Euro-2004, tantas foram as “missas” memoráveis lá celebradas todos os anos, pois todos os pontífices do belo jogo deste século por lá passaram.

Todavia, muitos verberam a incapacidade de o clube manter nas suas fileiras o cometa Enzo Fernandez, mais um jogador vendido por uma verba absurda ao fim de meia dúzia de meses de missão pastoral, porque o Benfica é incapaz de reter valor e o estádio da Luz não passa de uma plataforma de negócio, tal como o jovem argentino identificara ao chegar a Lisboa no verão. 

Estrutura imponente e emblemática, com os seus 60 mil lugares para coros afinados, padres, bispos e arcebispos, e visitantes de outras crenças, é hoje o altar-mor dos vendilhões da bola. De cada vez que ali acontece uma celebração futebolística, alguma aparição divinal, dá-se o milagre da reprodução do investimento, sempre abaixo dos valores reais, mas de enorme repercussão mediática, para fortalecer o poder de quem o exerce e consolidar a alienação dos fiéis anónimos.

A “Catedral” é, vinte anos depois, um dos mais carismáticos palcos dos “mercados” de verão e de inverno, autênticos festivais do negócio do futebol.

Desta vez, foi o meteoro Enzo que cruzou o mundo à velocidade da Luz - em 29 jogos, 4 golos e 7 assistências - com o chamado “manto sagrado”, para se valorizar exponencialmente.

O desfecho satisfaz todos os que se contentam com os troféus e medalhas do transfermarkt, frustra os que desejavam pelo menos uma época de estabilidade na equipa e indigna os que não se resignam com a política de import-export do “vieirismo”.

Dos 121 milhões da maior compra de sempre da Premier League, o Benfica cede mais de 44 milhões ao River Plate, somando o inicial ao complementar, quase cinco milhões dos mecanismos de solidariedade e quase oito milhões de comissões - um verdadeiro absurdo para uma transação ditada pela procura -, pelo que o lucro desta operação será de aproximadamente 65 milhões, muito dinheiro num negócio feito em seis meses, mas bastante abaixo do que sugere o valor global da “cláusula de rescisão”.

Na linha do seu mestre, o presidente Rui Costa encenou uma brilhante opereta de resistência ao assédio do Chelsea, transportando para os últimos minutos do prazo de transferências uma venda que nunca esteve em causa. Mais uma vez, os vendilhões do templo facturaram à tripa-forra, elevando para mais de 10 milhões de euros os “custos” de intermediação proporcionados pelas duas transferências do jogador argentino em menos de um ano.

Os “coordenadores” do altar de Beirolas também tentam convencer-nos de que aquele mamarracho irá ser palco de regulares ajuntamentos de um milhão de pessoas e que o país, crente ou agnóstico, deve pagar o futuro benefício dos promotores dos festivais de verão e de inverno, à imagem dos agentes FIFA nos mercados da bola.

Acredite quem precise.