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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

21 Jan, 2023

O VAR e a política

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Praticamente à mesma hora, o árbitro Rui Costa sofreu um bloqueio que o impediu de ver, não uma, mas duas faltas para grande penalidade na mesma jogada perto do fim do Sporting-Vizela e o ex-ministro Pedro Nuno Santos sofreu uma epifania que lhe recuperou a memória de uma gorjeta de 500 mil euros que inadvertidamente deu a uma desconhecida que se lhe atravessou ao caminho em duas empresas públicas que tutelava.

No futebol, procura-se repor a “verdade” (desportiva), recorrendo a mecanismos de escrutínio que vêm sendo apurados ao longo dos tempos e que nunca foram tão rigorosos como hoje, visando garantir o respeito pelo espectáculo.

Na política, procura-se encobrir a “mentira” (governativa), recorrendo a estratagemas ridículos que envergonham toda a sociedade e só nos fazem perder o pouco respeito que resta pelos protagonistas.

O futebol dá, portanto, um bom exemplo à política.

Aqueles que se queixam da corrupção, da batota e das conspirações dos bastidores desportivos pensem dois minutos sobre o que grassa na atividade política nacional, comparem um penálti “duvidoso” com uma violação de um PDM, uma expulsão “perdoada” a um “tackle” deslizante com uma derrapagem de milhões em obras públicas, uma contratação inflacionada por comissões abusivas a uma indemnização milionária sem justificação.

Seria recomendável um VAR implacável e interventivo para este jogo batoteiro entre o Governo e a Oposição, para o dérbi manhoso entre ministros e jornalistas, para o clássico mal cheiroso entre rosas e laranjas. 

Sim, a política devia seguir o exemplo do futebol, mas temo que os próximos tempos nos tragam exactamente o contrário, ou seja, o futebol a imitar outro péssimo exemplo da política.

Em breve, o IFAB deve autorizar a sonorização pública das comunicações de forma a permitir a audição em direto dos diálogos com o VAR, mas essa exposição pode acabar por levar os árbitros a defenderem-se, perdendo naturalidade, imitando os políticos quando confrontados com os seus erros flagrantes:

- Não viste a mão do número 3 a agarrar o Coates?

- Não vi nada, não tomei conhecimento.

- Não viste o número 14 a dar um pontapé na cara do Paulinho?

- Não vi nada, não fui notificado. 

- Ouviu-se em todo o estádio o grito de dor, não viste que foi pénalti flagrante.

- Não vi nada, não ouvi nada, não sei de nada, não tenho nada a ver com isto. O processo foi instruído pelos serviços competentes no cumprimento das normas aplicáveis.

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O “medo é uma cena que a mim não me assiste” terá sido a primeira declaração viral da geração YouTube portuguesa, no início dos 52 segundos mais malucos antes da invenção do “Tik Tok”.

Aos gritos “anda Guedes, anda Guedes” e lançado sobre um “skate” numa rampa inclinada, o flash-herói Hélio Catarino driblou um automóvel que subia em sentido oposto e acabou a mergulhar num canavial num hino à irracionalidade humana, percursor de horas e horas de pequenos vídeos de parvoíces que milhões de “tiktokers” vão publicando diariamente para gáudio dos outros milhões que precisam de rir para seus males espantarem.

O mercado de inverno do futebol é o “story” de janeiro para adeptos ávidos de emoções positivas que disfarcem e sosseguem o nervoso miudinho desencadeado por maus resultados, pelas contas ao que falta jogar ou pelas notórias insuficiências dos plantéis.

Para os “youtubers” basta um telefone ordinário, acessível a qualquer um. Para os dirigentes do futebol, é necessário desafogo financeiro e capacidade negocial de que só um clube dispõe.

Jogadores sem velocidade nem capacidade de definição, como Aursnes ou João Mário, a actuar nas extremas do campo onde prevalecem o drible, o “sprint” explosivo e a espontaneidade de remate ou a colocação do cruzamento - eis uma insuficiência evidente que mais de 60 mil viram “in loco” no dérbi de domingo passado e que urgia remediar.

A contratação por empréstimo entre empresas gémeas do “Mendes Import-Export” é uma resposta digna de um “saiam da frente do Guedes, saiam da frente do Guedes”, a gritar pelo próprio Gonçalo quando, de skate calçado, se apresentar diante dos laterais direitos da Liga portuguesa, nas próximas semanas.

Excelente sentido prático da gestão encarnada, apesar da rara felicidade em anteriores empréstimos sem vínculo nem futuro, como este, faltando conhecer a convicção de Roger Schmidt, o qual acumula decisões divergentes do senso comum benfiquista no que toca à avaliação e preferência de jogadores. 

Gonçalo Guedes estava em situação crítica, afastado da seleção nacional e chumbado por um treinador que o conhece bem do futebol espanhol, mas acabou por ser contemplado com uma promoção extraordinária, que passa da ameaça de descida de divisão em Inglaterra para os oitavos-de-final da Liga dos Campeões.

Neste Guedes, a quem também não assiste o medo de driblar os carrinhos ameaçadores nas perigosas rampas da Liga portuguesa, o Benfica deposita uma declaração de confiança e de desafio para todo o balneário, à entrada da segunda metade da época:  “não tenhas medo, se não vais partir-te todo”.

 

FOTO abola.pt

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Empurrar com a barriga é o hábito mais português dos portugueses. Amanhã é outro dia, enquanto o pau vai e vem… Foi assim que o Benfica e a justiça desportiva chegaram a hoje, Janeiro de 2023, e chocaram de frente com o problema anunciado pela revelação dos emails do bizarro quotidiano processual da SAD vieirista e ao conhecimento público do estilo inortodoxo e, comprovadamente, antidesportivo de Paulo Gonçalves à beira-Tejo, como um tubarão em estuário de golfinhos.

Chegou o dia em que o Conselho de Disciplina da Federação Portuguesa de Futebol se viu entre o abismo da prescrição de crimes de que o próprio Ministério Público ainda não deduziu acusação e a necessidade (ou a vontade) de dar um passo em frente - que consiste no espoletar da bomba atómica regulamentar da pena de descida de divisão para casos de corrupção desportiva.

Rigorosa com os Gil Vicente e Boavistas, mas medrosa com os grandes, a justiça federativa foi repousando sobre a lentidão da justiça comum, tranquila sobre o seu alibi para o inevitável amontoar da injustiça desportiva, que no pior caso, aquele que era preciso caucionar desde o rebentamento do escândalo, pode apresentar uma fatura incobrável de títulos, qualificações, receitas e, sobretudo, memórias para todos os envolvidos directa ou indirectamente. 

Desde o Benfica que teria ganho o que não devia, a todos os adversários que não conquistaram o que estaria ao seu alcance - eis toda uma história de dez anos que é impossível reescrever. Estes podem vir a ser os anos dos asteriscos (*) à frente do registo classificativo.

Sim, eu sei, o Benfica é presumível inocente até prova em contrário.

Mas o que está agora em jogo já não são os factos, no mínimo imorais e pouco éticos, revelados sobre os processos de gestão da SAD de que o atual presidente era vice-presidente. O que emerge de novo é o balanço de três anos, após o afastamento compulsivo de Vieira, sem que os sucessores algo fizessem para atenuar os efeitos desta explosão anunciada. 

O presidente deposto empurrava com a barriga e o herdeiro seguiu-lhe o exemplo, como era expectável. Não foi dado qualquer passo significativo para arrepiar caminho, na sequência da recondução eleitoral da maioria dos sequazes de Vieira, nomeadamente a auditoria profunda e exaustiva à gestão anterior, mas apenas um “all in” no sucesso do futebol, capaz de tudo abafar e todas as mentes alienar, como também e tão mal já fazia o líder original.

O Benfica pode, efetivamente, ser condenado a descer de divisão em caso de condenação em algum dos processos que parecem estar a entrar na recta final. O caos instalar-se-ia na sociedade portuguesa, porque a influência desta instituição ultrapassa em muito o âmbito meramente desportivo.

O Benfica reerguer-se-ia depois de adaptado às consequências desportivas e financeiras do afastamento das provas da UEFA, tal como outros grandes clubes europeus que enfrentaram problemas semelhantes. Mas os efeitos deste processo sobre a Liga portuguesa e seus clubes seriam devastadores, o mais interessante dos quais, para não dizer o mais positivo dos quais, a possibilidade de negociação dos direitos de televisão sem o “obstáculo” encarnado: ficaríamos, finalmente, a saber o que vale o futebol nacional sem o seu abono de família.

Responderão que ainda estamos longe, que é melhor continuar com a barriga encostada ao balcão, a desfrutar do "Schmidtball” e o seu a seu tempo. Que cresça a barriga e continue a crescer!

 

FOTO jogo.pt

16 Jan, 2023

O barulho da Luz

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Pela primeira vez desde a pandemia, voltei ao Estádio. A Luz brilha e encandeia como nunca, transformou-se de inferno virtual em vulcão real, com a corrente eléctrica dos “leds” e dos altifalantes a tolher sentidos e a despertar uma atmosfera de momentânea felicidade que vai muito para lá da simples alienação clubística. A Luz é hoje uma das “arenas” mais avançadas da Europa, prometendo um ambiente frenético e espectacular quando os profissionais do Benfica souberem tirar partido das potencialidades do “software” que comanda a panóplia tecnológica que acaba de ser instalada, sem esquecer a necessidade de um “speaker” fora da caixa e que não pareça completamente desfasado do guião.

O Benfica empatou com o Sporting e não demonstrou a superioridade que quase um ponto a mais por jornada poderia sugerir. Pelo contrário, nem o Benfica é tão forte como a sua liderança esmagadora, nem o Sporting tão frágil quanto o seu prematuro afastamento da corrida do título.
O que este jogo me disse foi que o Benfica ainda terá de melhorar muito para chegar ao campeonato. Tem uma defesa que comete erros infantis, um meio-campo que retira profundidade ao jogo, porque os médios-ala não têm velocidade, e um ataque que se desenrasca, mas não se movimenta por uma estratégia sistemática.
O Sporting está fora da corrida pelo título porque só a vitória lhe interessava e viu-se mais longe do segundo lugar por ter optado por especular com as incidências da partida, tentando tirar a bola ao Benfica e esperar por algum golo fortuito. Teve dois, mas não conseguiu segurar as vantagens, deixando apenas a certeza de ser uma equipa muito bem trabalhada colectivamente, mas também com reduzidas opções de ataque.
Assisti, assim, a duas “derrotas” desportivas, mas a um enorme espectáculo, digno do primeiro mundo do futebol. Os benfiquistas sempre souberam montar uma festa e têm agora um palco que eleva para “outro patamar” o paradigma do futebol profissional em Portugal, vincando cada vez mais a “opção SAD” em detrimento da “tradição clube” e o “all in” de Rui Costa no sucesso do seu “joker”, o treinador Roger Schmidt, que é, na prática, o verdadeiro e único CEO, chefe executivo da operação nuclear.
Se a aposta de evolução do futebol é evidente, no clube nada do que foi prometido no processo pós-Vieira, dos estatutos à auditoria, passando pela promessa de liderança política desportiva nacional, surge na primeira linha, talvez nem na última, do plano de execuções da direção. O que decorre, naturalmente, de Rui Costa ter continuado rodeado dos “yesmen” do seu antecessor, confirmando que a mudança era apenas necessária para que tudo permanecesse igual e, ainda, sob o peso dos processos judiciais que já esmagaram o anterior presidente e ameaçam desabar nos próximos meses em cima deste estado de graça.
Ainda se sente um forte odor a vieirismo por ali, embora capaz de oferecer um jogo de futebol quase sem insultos idiotas entre as claques, quase sem pirotecnia imbecil, com mais de 62 mil pessoas entusiasmadas, com adeptos do Sporting junto de adeptos do Benfica, enfim, um espectáculo do primeiro mundo futebolístico, com dois campeões do Catar em campo, coisa nunca vista entre nós.
Talvez aquilo tudo não represente o futebol português, cheio de casos e casinhos e uma mentalidade passadista, talvez aquela felicidade e tranquilidade final de toda a gente fosse só a ilusão que encandeia e o frenesim electrizante do “barulho” de luzes e ecrãs, como quando saímos de um concerto de rock. Talvez. Mas não é esse o objectivo final e único dos espectáculos, de proporcionar prazer a quem assiste - sem ódio, frustração ou desespero?
Ontem voltei à bola e gostei.

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Quando o nosso clube perde, a única verdade que sobrevive é a forma da bola. Continua redonda como a Terra, mas tudo o resto é aplanado pelos buldozzers da “verdade”, tudo o resto é negativo, é negócio, é negacionismo - seja por crença, proveito ou imbecilidade. Tornou-se mais fácil acreditar em “fake news” do que em notícias.

Chamam-lhe “jornalixo”  - é a primeira vez que assumo esta palavra, cuja existência estava mentalmente proibido de reconhecer.

É negativo porque teve origem, desenvolveu-se e sustenta-se no obscurantismo da ignorância e na religiosidade fanática do clubismo. Quanto menos “cultura desportiva”, quanto menos prática e busca do conhecimento, mais intolerância, mais terraplanismo: é o “gado”, como chamam no Brasil à seita dos seguidores acéfalos do capitão Bolsonaro, irracional e doentio, cuja profissão de fé passa por não ler e não gostar da imprensa e ver só a televisão de que também se diz não gostar.

Por cá, o juramento solene do vigilante escuteiro do bolaplanismo obriga a não ler os jornais desportivos, excepto as “capas” para acompanhar a tendência das manchetes, e passar o serão em transe com os “cartilheiros”, para estar em condições de aguentar o confronto da máquina do café, com o colega do clube rival, a meio da manhã do “dia seguinte”. Este foi, aliás, o sugestivo nome de um dos célebres areópagos televisivos que todas as semanas julgam a existência da verdade e assassinam à pancada verbal a inteligência colectiva e o original conceito de um programa de diversidade com gente civilizada a discutir bola e clubes - e não de “três estarolas”, os “médicos, advogados e economistas” dos pesadelos de Carlos Queiroz -, em que a ingénua ideia original de Jorge Perestrelo veio a degenerar depois de adaptada ao formato de guerrilha tóxica por Emídio Rangel.

É negócio porque, como definiram os romanos antigos pela “negação do ócio“ que vai muito além do valor superficial de um mero jogo, aquilo anda tudo ligado numa grande conspiração de interesses e contrapartidas. Não se confina à produção e venda de jornais, publicidade e direitos de imagem, mas abarca as chorudas comissões dos agentes poderosos, a corrupção de dirigentes, árbitros e jogadores de clubes pequenos e as avenças dos “jornaleiros” - tudo sabendo ao pormenor, sem comprar um jornal e a ver a bola somente no “canal Inácio”, porque não se pode contribuir nem com um cêntimo para financiar essa conspiração monstruosa.

É negacionismo porque, se não ganhamos, é mentira. Há-de haver um penálti inventado, um auto-golo suspeito, um lançamento lateral fora do sítio, um cartão amarelo a menos, um minuto a mais, que não deixarão dúvidas de que aquilo estava tudo comprado e a “verdade desportiva” foi violada - e, claro, a imprensa é cúmplice porque esconde a verdadeira razão do resultado indesejado e é culpada porque dá a notícia.

O bolaplanista tem a esperteza de descortinar que a falta de “isenção” dos jornais e jornalistas resulta da “guerra das audiências”, publicando factos falsos ou distorcidos para venderem mais, numa corruptela do que se convencionava chamar de sensacionalismo da imprensa tablóide, no século passado. O absurdo desta convicção empírica é a certeza comprovada de que nunca se venderam tão poucos jornais nem as audiências televisivas foram tão baixas e desqualificadas - mais por repulsa selectiva das mensagens do que por falta de qualidade dos mensageiros.

“Todos cúmplices, em rebanhos, a seguir o protocolo”, sintetiza o “rapper” Estraca no seu “Jornalixo”. “Mas na luta pela verdade, que se fodam os protocolos”. 

“Pois, mas disto ninguém fala” - é a senha para ingressar nas tertúlias do “whatabout” futebolístico militante,  verberando as fontes, também chamadas de “fontanários”, que terão dado a informação que interessa como contraponto da realidade que não interessa, e recebendo de volta a contrassenha que distingue os bolaplanistas profissionais: 

“Vocês sabem do que eu estou a falar”.

 

“Deixem

passar quem vai na sua estrada.

Deixem passar

Quem vai cheio de noite e de luar.

Deixem passar e não lhe digam nada.”

- Miguel Torga, “Santo e Senha”

 

A SEGUIR: K de Keeper

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Depois do simplesmente Bah e de Aursnes, o nome com três vogais mais difícil de pronunciar no universo do futebol, chegam o Tengstedt e o Schjelderup. Até parece que o Benfica gastou 16 milhões de euros para se vingar dos comentadores das televisões que infernizam a vida do seu departamento de comunicação com horas e horas de verrina, inuendos e conjecturas sobre os casos e casinhos da vida do clube mais discutido do país.
Esta é a primeira consequência direta da drástica deriva de azimute do “scouting” encarnado, da América do Sul para o norte da Europa.
Alex, Fredrik, Casper e Andreas, chamemos-lhes assim para evitar aftas e perdigotos, despertam a nostalgia pelos tempos dos “altos, louros e toscos” que marcaram a história encarnada pela visão do mais influente e revolucionário treinador estrangeiro que passou por Portugal nos últimos 50 anos, precisamente o sueco Erikson, com quem o alemão Schmidt vem sendo comparado, pela fleuma, pela educação e pela firmeza conceptual.
Também Stromberg e Manniche chegaram à Luz como “jogadores do treinador”, totalmente desconhecidos num tempo sem tráfego digital, por pedidos cirúrgicos para suprir falhas do plantel. As vagas seguintes dos mares do norte, de Thern, Schwarz e Magnusson, já deram à costa com a serenidade das pescarias de rotina.
O desengonçado Stromberg, primeiro percursor do box-to-box dos nossos tempos, bem como o inortodoxo Manniche foram muito bem recebidos e adoptados, porque, ao seu jeito ou falta dele, ambos simplesmente entregavam soluções: força e abrangência de jogo do médio, combatividade e golos do avançado. E os sucessores ainda aumentaram a identificação do Benfica, como nenhum outro clube português, àquele futebol de fusão que, desde o Mundial de 1958, influenciou positivamente o tipo de jogo de vários países e clubes grandes do sul europeu, em particular, os italianos.
Numa era em que os estrangeiros se contavam a dedo, Erikson montou uma geringonça futebolística com portugueses e nórdicos que dominou por cá e assustou a Europa durante quase dez anos, além de ter iniciado com Stromberg a exportação de jogadores com fabulosas mais-valias.
Nos tempos erráticos que o Benfica viveu a seguir - antes e durante o Vieirismo -, o filão escandinavo emergia sempre do nevoeiro das soluções de recurso como o Freyr, deus Viking da abundância, para remédio milagroso do mau futebol e dos péssimos resultados, por meio de um estilo de jogo radical que se casava com a tradição encarnada como o gelo tempera a paixão. Foi assim que apareceu um atípico Pringle, alto e tosco mas não louro, que não sabia se era defesa ou avançado e conduziu ao encerramento da mina, para não obscurecer o prestígio dos antecessores.
E assim, após longos anos de abandono deste filão em contraste com o resto da Europa mais desenvolvida no futebol, estamos no limiar de uma nova engenhoca luso-viking, fundindo as bases do Seixal com o diferencial nórdico, agora distante do clichê fisionómico, porque a escola dinamarquesa, em particular, se desenvolveu a partir da “geração Laudrup” e vem oferecendo inúmeros jogadores com enorme facilidade de adaptação, a qualquer liga europeia, fortes fisicamente, sempre, mas muito fiáveis tacticamente e desenvoltos tecnicamente.
Ao fim de seis meses de trabalho, Schmidt terá concluído que as soluções do Seixal estavam esgotadas, por agora, para decepção dos adeptos encarnados, ávidos do sucesso dos seus meninos. António Silva, Florentino e Gonçalo Ramos são, no entanto, muito mais do que o exigível: três titulares num ano é um rendimento três vezes superior à média realista de um jogador por ano saído da formação, tal como já se desejava nos tempos em que Fernando Martins abriu, finalmente, as portas da Luz aos profissionais suecos e dinamarqueses.
Pela sua juventude, o novo Darwin e o extremo que faltava entram diretamente no catálogo dos 100 milhões, o que diz tudo sobre a estratégia da atual direção do Benfica para a sua máquina de descobrir, transformar e vender jogadores, quase quatro anos depois do último título.

FOTO SL Benfica

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No último ano aprendi que o chuchu, pimpinela para os madeirenses, é uma espécie de Cristiano Ronaldo dos quintais, reproduzindo-se enleado numa rede suportada por postes, em unidades, pares, trincas e até cachos de frutos ricos em fibras, vitaminas e sais minerais, num espaço mais apertado do que as grandes áreas de Old Trafford.

São 1200 quilos ao ano, 100 quilos ao mês, 24 quilos por semana e por aí adiante - é fazer as contas. E, outra vez, lembrei-me do contrato de Cristiano na Arábia Saudita, o falso deserto onde as cucurbitáceas deram lugar a videiras de barris de crude nas hortas da Aramco, a empresa mais lucrativa do mundo.

O facto de eu pensar que a caiota dá o seu fruto sem querer outro agradecimento do que a admiração e elogio pela sua fertilidade sem limite, resistindo ao envelhecimento e às adversidades, chega-me como obrigação de gratidão. Ao jantar, nunca rezo “obrigado chuchuzeiro por todas as saborosas e nutritivas sopas que me proporcionaste no passado”, nem me sinto ingrato por algum queixume ou censura que me tenha escapado quando a colheita da semana não atinge a bitola habitual ou o calibre não se figura tão apurado e memorável como é apanágio daquele pé quente de machucho.

Ingratidão para quem reproduz o que está obrigado, por natureza ou contrato, é bajulação. Eu não devo nada ao prolífico pé de “Sechium Edule” do nosso quintal, tal como os portugueses em geral não têm qualquer dívida perene ao nosso melhor chutador do século.

Quando me pagavam sandes, sumol e três pancadinhas nas costas pelas minhas performances sobre pelados regionais, sentia-me pago pelo genuíno agradecimento de quem me retribuía o esforço e o talento na medida justa. Ora, mais de mil milhões de euros de salários e benefícios, mais triliões de 👍 e ❤️ por dia, dão para comes e bebes e massagens ao ego que cheguem para agradecer a Cristiano Ronaldo até ao terceiro milénio, pelo menos. 

É certo que marcou golos “p’ra chuchu”- como dizem os brasileiros - ao longo de uma carreira inolvidável, mas também foi recompensado pelo seu trabalho e dedicação com uma vida de bençãos, tesouros e mordomias que bastariam a qualquer comum mortal para, ele sim, se sentir humildemente agradecido.

Como um fenómeno reactivo, “Ingratidão” foi uma das palavras de 2022, perante a corrente de censura tímida às múltiplas diatribes do jogador, dentro e fora dos relvados, pelos que o colocam acima dos mortais comuns contra os “hipócritas” que se limitam a aplaudi-lo quando faz bem e a censurá-lo quando faz asneira. 

Nos círculos do ronaldismo fanático, apontar erros a Cristiano tornou-se tão herético como Dona Georgina passarelar modelos sem hijab nas discotecas de Riade.

No futebol, a gratidão é coisa do momento, colhe-se, agradece-se e guarda-se em lugar seco e quente. Aplaude-se, celebra-se, ajunta-se às memórias felizes - e chega como quitação. 

Amanhã, haverá novas emoções, nova descobertas e, de certo, um novo xuxu na nossa rede de afectos futebolísticos.

Foto A Bola

A SEGUIR: J de Jornalixo

11 Jan, 2023

Félix, o flexível

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A transferência de João Félix do Atlético de Madrid para o Chelsea é como a passagem de uma penitenciária de alta segurança para uma cadeia de colarinhos brancos em regime aberto. Das sevícias do torcionário Cholo Simeone, o inflexível, para a inteligência emocional de Graham Potter, o flexível. 

Ainda não será a liberdade plena, mas pelo menos um regime aberto, condicionado apenas ao curto prazo de adaptação num contrato de empréstimo temporário, que vai dar espaço e enquadramento às reais capacidades do jogador português.

Assim como a opção tomada ao sair do Benfica era previsivelmente errada, contra a opinião de muitos observadores nacionais e internacionais, também esta solução temporária, na sequência do grito de socorro que lançou no Catar, pode ainda não ser o destino final adequado, empurrando para o verão uma decisão definitiva sobre o rumo a tomar. Mas reabre uma janela para a carreira de sucesso que se lhe vaticinava há quatro anos.

Uma faceta interessante deste negócio é a afinidade pessoal e profissional entre o novo treinador do Chelsea e o novo seleccionador de Portugal, Roberto Martinez, cuja “entourage” terá influenciado o início da carreira de Potter quer na Suécia, quer no Swansea: ambos se declaram defensores da “flexibilidade táctica” de espírito ofensivo, em função dos adversários. 

Ora as flexibilidades técnica e táctica de João Félix, aliadas a talento e criatividade sem limites, são características que o distinguem como um dos mais extravagantes jogadores numa era do futebol “aprisionado” por treinadores resultadistas.

Do 5.º lugar em Espanha para o 10.º em Inglaterra, não se pode liminarmente considerar que a carreira do jovem português tenha melhorado, mas o contexto favorece-o, desde logo pela continuidade na Liga dos Campeões: em Stamford Bridge há condições para recuperar o protagonismo perdido, projectando-o para a seleção, como expoente de uma geração ainda mais prometedora do que a anterior. O Chelsea está muito mais perto do patamar cimeiro do futebol europeu do que o Atlético.

O desafio de Potter de adaptar e fazê-lo evoluir é semelhante ao dos produtores de Hollywood que ao longo de décadas tentaram atualizar as características singulares do primeiro herói dos desenhos animados, da rigidez do cinema mudo e a preto e branco, para as sete vidas coloridas do Gato Felix com sua mochila de truques, em concorrência com o Rato Mickey e os outros ícones da Disney: conquistar público sem perder a magia.

FOTO Chelsea FC

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Quando Álvaro Cunhal publicou o “Partido com paredes de vidro” (1985), proclamando a transparência de mostrar como actuavam, lutavam e viviam os comunistas portugueses “de forma a facilitar a observação de quem estava de fora”, foi glorificado pelos correligionários e desvalorizado pelos cépticos. De um lado, a “verdade a que temos direito” como lema da comunicação interna, do outro, a desconfiada sabedoria lusitana de “com a verdade me enganas” dos adversários de sempre.

Os mentores comunicacionais do presidente da Federação Portuguesa de Futebol seguem esta estratégia de “biombo de vidro”, em que se usa o conceito de transparência, levado ao extremo da imagem cristalina por canais próprios como a televisão do “futebol positivo”, para iludir a realidade e esconder a praxis real com simulações perfeitas de exposição pública.

Olha-se através do vidro, mas não se vê nada.

Foi assim a conferência de imprensa de apresentação do novo seleccionador nacional, primeira aparição de Fernando Gomes após a hecatombe do Catar, a desresponsabilização dos dirigentes, o despedimento sumário do “treinador mais titulado” e o conflito insanável com o capitão Cristiano Ronaldo, entre outros episódios mais ou menos controversos, como a renúncia de Rafa Silva por suspeitas de destratamento federativo.

Três perguntas, só três perguntas, duas por afinidade e outra por designação.

Respostas adequadamente correctas de agradecimento a Fernando Santos da porta aberta, sobre a inadequação dos treinadores portugueses e sobre a justificação para a duração do contrato do senhor Martinez - três oportunidades de passar por esclarecedor sem revelar uma vírgula da rescisão do contrato FEMACOSA, da distância os treinadores portugueses do perfil definido, dos nomes dos candidatos descartados ou do valor milionário que convenceu o espanhol.

“Passamos agora ao senhor seleccionador nacional…” - e digamos adeus ao grande líder, até uma próxima oportunidade em que seja absolutamente necessário abrir as cortinas e deixar entrar uns flashes de mediatização pelas vidraças do Jamor.

As explicações eventuais, incluindo respostas aos que criticam o autoritarismo federativo, ficam para a opacidade dos relatórios e para a dialética do Comité Central, perdão, da Assembleia Geral.

O biombo de vidro da Cidade do Futebol revela-nos a “organização, trabalho,  centralismo (…), prestação de contas, experiência, renovação, consenso, unanimidade, democracia, direitos e deveres, crítica e autocrítica (…) com transparência cristalina” que Miguel Urbano Rodrigues, antigo chefe de redação do “Avante” e diretor de “O Diário”, treslia no livro de Cunhal sobre o PCP. 

É a “revolução tranquila do futebol português”, liderada por quem “sabe distinguir a solidão do silêncio”, como sabiamente lhe chamou Fernando Seara.

 

FOTO A Bola

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Bitaite é um género jornalístico não reconhecido oficialmente que se situa entre as “cabinas” dos meus tempos de estagiário e as “flash interviews” do jornalismo de colocação de marcas e produtos.

É certo que tinha um cunho regionalista, menos valorizado na “capital do império”, mas chegou a merecer honras de destaque em momentos de aflição editorial em que podia até valer uma manchete, iludindo “blackouts” e tentativas de intimidação. 

No YouTube está a descrição da invenção, pelo próprio autor, mais tarde assumido e reconhecido como “Professor Bitaites”: por doença de um repórter, foi, a pedido do grande jornalista Frederico Martins Mendes, fazer a cobertura de uma assembleia geral do FC Porto, mas ao entregar o texto, escrito à mão, “nem sequer um linguado”, não teve coragem de lhe chamar reportagem, nem notícia, e desvalorizou o trabalho feito.

“Estão aqui os meus bitaites, corrija alguma coisa que esteja mal”.

“Os teus quê?”

“Os meus bitaites…”

Embora ninguém consiga determinar a origem da palavra, que pode ser uma corruptela de “bitate” definida pelo Houaiss como “afirmação contrária à verdade; mentira” ou “conversa para ludibriar a polícia” e pelo Porto-Editora como um “palpite” ou “opinião”  - nessa mesma noite, na tertúlia do costume, entre jornalistas e homens do futebol, o futuro diretor do JN institucionalizou para a posteridade o novo género jornalístico.

“Preciso de um bitaite aqui para a badana” - lembro-me de pedir aos jornalistas ou editores das redações portuenses. Os leitores nunca saberiam, mas aquilo chegou a ter muita importância, porque definia o estilo e a dimensão do texto no código editorial.

Infelizmente, não há muitas gravações disponíveis de Hernâni Gonçalves, um dos pioneiros da preparação física específica do futebol, que se destacou de outros contemporâneos por manter com os jornalistas uma relação de grande respeito e cordialidade, defendendo o FC Porto com rara inteligência emocional, sem esconder um grande “amor, permanentemente a viver entre o profano e o sagrado”, ou não tivesse sido ele a baptizar Pinto da Costa de “Papa”. 

Em muitos momentos, foi uma autêntica “válvula de escape” de relações difíceis com a imprensa, não apenas a nível do clube, mas também da seleção nacional, em particular no Europeu de 1996: lembro-me de encontros fora de horas, num “pub” de Dublin, para desfazer os equívocos provocados pelo seleccionador nacional António Oliveira (“a versão cientificada do grande mestre Pedroto”) ou esclarecer as tensões no seio da equipa.

Um bitaite de Hernâni Gonçalves também se destacava pelo rebuscado das expressões, com um cunho pessoal fácil de “viralizar” com epítetos pitorescos (“príncipe das Caxinas”), metáforas sensoriais (“futebol com perfume Channel”) ou proclamações inabaláveis (“FC Porto for ever”), e até pela expressividade dos gestos, mais tarde popularizados no genial programa “Liga dos Últimos”, da RTP. 

Sobre Pedroto, com quem primeiro trabalhou, escreveu que foi “o cabouqueiro, o arquitecto, o engenheiro (…) que se transformou em justiceiro ao protagonizar a emancipação do norte desportivo quando desenterrou o machado de guerra, denunciando com pressão frontal e demolidora a macrocefalia de Lisboa, um visionário que revolucionou os processos de treino e a gestão do futebol num contexto desportivo e político adverso”.

Isto era um bitaite “do mais fino recorte”, sempre preocupado com o léxico e a força das palavras, sem subterfúgios, como nesta resposta ao saudoso Rui Tovar, num “Domingo Desportivo” dos anos 80:

“Tirando uma ligeiríssima alteração num ciclo, em que, aliás, a metodologia foi rigorosamente corrigida (…) a nível de condição física, psicológica, técnica e táctica, o FC Porto patenteia toda uma performance de uma boa equipa europeia (…) e podia ter aumentado o score e traduzido em quatro ou cinco, obstando a isso a exibição do guarda-redes adversário”.

“Metodologia”, “condição”, “patenteia”, “performance”, “score”, “obstando” - como o próprio diria hoje, se estivesse entre nós, isto era um “bitaite de excelência”, como o que homenageou a revolução tecnológica no jornal que sempre honrou: “o JN antes era um porta-aviões, agora é o Air Force One”.

 

A SEGUIR: I de Ingratidão

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