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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

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Há uma terminologia do futebol moderno que me remete sempre para Chico Buarque.
Quando os jogadores estão na “primeira fase de construção” eu recordo e corrompo o verso inicial em “a(r)mou daquela vez, como se fosse a última”.
Quando eles passam à fase de criação, que para mim continua a ser de “construção”, cantarolo “atravessou a rua com seu passo tímido, subiu a construção como se fosse máquina”.
E finalmente quando chega à terceira fase, a da finalização - por que não “construção” final? - ou embalo na festa de “dançou e gargalhou como se ouvisse música” se der em golo ou, na maioria das vezes, caio no desespero de “tropeçar no céu como se fosse um bêbado”, por cada oportunidade desperdiçada.
“Construção” é o paradigma do futebol moderno, que transformou um jogo de pintores do belo em trolhas do passe e repasse, autênticos autómatos das “periodizações tácticas”, das “alternâncias horizontais” ou das “progressões complexas”, algumas das teorias assassinas do desporto canalha de que a gente gostava.
“Ergueu no patamar quatro paredes sólidas, tijolo com tijolo num desenho lógico”.
O futebol deixou de ser obra de grandes armadores de toques e truques saídos dos becos e dos quintais e passou a ser coisa de construtores e empreiteiros de autênticos condomínios-mamarracho, cheios de regras, circuitos e proibições, para “não estragar a relva”.
Na contracorrente de uma sociedade que tanto valoriza o “gourmet”, o nosso futebol tem-se transformado num repetitivo “comer feijão com arroz como se fosse o máximo”, ainda que por vezes apaladado por um qualquer jogador rebelde com momentos, apenas momentos fugazes e raros, fora da receita.
Voltemos à “primeira fase”.
Se nos ativermos a inquestionáveis teorizadores do futebol, como Carlos Queiroz (1983), elas seriam apenas duas, a fase ofensiva ou a defensiva, consoante a equipa possua a bola ou não. Mas em académicos mais jovens, como Gabriel Silva (2008) já encontramos quatro momentos (transição ofensiva, organização ofensiva, transição defensiva e organização defensiva), que, como os mosqueteiros, segundo Jorge Jesus (2020), afinal são cinco, juntando-lhe as bolas paradas.
Confusos?
A primeira fase de construção é, pois, um albergue espanhol onde todos cabem, desde o guarda-redes, que “sai a jogar”, ao último passador para a finalização: ou o passe decisivo não contará também como construção de um golo, que é, efetivamente, o edifício acabado?
E é assim que, depois de muito investigar, não consegui encontrar sequer vestígios da segunda fase de construção, muito menos da terceira. Talvez os teóricos que inventaram esta parte, também descritas como momentos ou etapas, ainda não tenham chegado a conclusões sobre onde acaba o primeiro e começa o segundo e assim sucessivamente, de forma a tornar o jogo de futebol tão sugestivo como as quatro partes da poesia - verso, estrofe, rima e métrica. Ou tão arrebatador como as três fases de um conto prosaico: inicio, nó, desenlace.
Poesia brasileira ou prosa europeia, rua ou laboratório, liberdade ou sistematização, como também cantou Chico em “O Futebol”:
“Para aplicar uma firula exacta, que pintor?
Para emplacar em que pinacoteca, nega?
Pintura mais fundamental que um chute a gol
Com precisão de flecha e folha seca”
Portanto, começámos pela primeira fase e agora? Alguém me ajude a descobrir e entender a segunda fase da construção, antes de “morrer na contramão, atrapalhando o público”!

FOTO WorldPress (Chico Buarque com Coluna e Eusébio)

A SEGUIR: D - Duplo pivô

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Muitos se recordarão daquela tarde do verão de 2004 em que a TVI colocou José Mourinho a comentar o Portugal-Espanha do Europeu. Algures nessa função, o treinador da moda, recém coroado campeão europeu com o FC Porto e contratado pelo Chelsea, usou o termo “basculação” para caracterizar o movimento lateral da equipa enquanto o lateral direito Miguel fazia “pressão vertical”.

Esses comentários foram “unanimemente considerados os melhores da prova e um exemplo de como falar de futebol”, segundo a descrição do Mais Futebol, e assinalaram o desatar da criatividade lexical dos novos agentes do futebol, em particular os jovens treinadores a saírem dos seus cursos, para desespero dos clássicos e empíricos das gerações anteriores. 

Há um futebol falado antes e depois de Mourinho.

O mais interessante - e inexplicável, para mim - foi toda a gente ter percebido o que ele queria dizer. “Basculação” - bem como “vertical” - não tinha, até àquele dia, o significado que ele lhe atribuiu, mas quem estava a ouvir não precisou de ir ao dicionário descodificar a mensagem.

O verbo bascular significava apenas, nos canhenhos do século XX, “virar um recipiente com a boca para baixo fazendo-o girar em torno de um eixo horizontal”. Mas, a partir daquele dia, também passou imagem de uma equipa a descair sobre uma lateral do campo, a inclinar-se com a bola de um lado para o outro, criando espaço, o que os ingénuos de outros tempos descreviam singela e modestamente como “mudança de flanco”. 

Para aumentar a clareza do que antes se designava apenas de jogo “muito puxado para as laterais”, Mourinho serviu-se da imagem do reboque basculante de alguns camiões, que permite levantar uma borda descendo a outra para provocar o deslizamento da carga. Ou do movimento das pontes levadiças, que levantam apenas uma extremidade sobre um ponto fixo no lado oposto.

E, apesar de, 18 anos depois, a palavra “basculação”, bem como a sucedânea “basculamento”, continuar de fora dos dicionários, não existindo oficialmente, toda a gente sabe o que quer dizer. Até algum brasileiro vacilão a terá utilizado já.

Foi com o tom rebuscado de algo que parece científico que Mourinho, paradigma de um académico que desafiava o status quo dos treinadores ex-jogadores dos tempos da bola de cauchu, deu um passo decisivo no sentido de aprimorar o linguajar desportivo.

Durante alguns anos, a expressão mais arrojada que algum treinador tinha conseguido acrescentar ao calão anglófilo de termos adaptados da origem do jogo, tinha sido o “coisas bonitas” de Artur Jorge, que os seus pares imitavam a esmo como se isso lhes emprestasse uma aura de sapiência e conhecimento. Ninguém se arriscava a inventar palavras. 

Ora, a “basculação” de José Mourinho virou o campo da terminologia futebolística, desatando o nó para uma série de neologismos metafóricos, às vezes anacrónicos ou contraditórios, mas suficientemente sonoros, eloquentes e, sobretudo, frequentes através da normalização das transmissões televisivas, entranhando-se nas mentes dos adeptos. Assim se começou a desenvolver o glossário que cria uma nova identidade, ao fazer cair para um flanco a esmagadora maioria dos praticantes de futebolês, deixando um largo espaço ignaro do outro lado para os teimosos puristas da língua.

 

AMANHÃ: C de Construção

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Pelas televisões do mundo inteiro desfilam comentadores falando sobre Pelé. Sinal dos tempos, não ouço ninguém com mais de 60 anos, que podiam ser os que o viram jogar, ao menos no Mundial de 1970. Mas toda a gente o conheceu, toda a gente sabe a história, toda a gente o tinha como seu, que ele chegou a ser uma marca reconhecida por 95 por cento dos humanos, com biografias escritas ou traduzidas em mais de cem línguas. Por isso, tenho muito pouco a acrescentar.
Vamos ler as histórias de almanaque, do pequeno engraxate de Bauru ao heróico Cabo Luis Fernandez da “Fuga para a Vitória” de Hollywood, passando por alguém que não foi além da instrução primária e chegou a ministro de um dos maiores países, as páginas da wikipedia e as buscas do Google vão alimentar até à saturação horas de informação, pormenores e estatísticas.
Quando se fala de “lenda” do futebol, a dimensão é esta: todos conhecem o que nunca viram, quer estejam em Três Corações, quer em Nova York, quer em Lisboa. É um património da memória universal, cósmica.
Eu só vi Pelé jogar nos Mundiais de 1966, onde fez três jogos fracos e acabou lesionado por uma marcação - chamemos-lhe assim - impiedosa de Vicente Lucas, e de 1970, pelo menos nos jogos com a Inglaterra, com o Peru, com o Uruguai e com a Itália. Alguns mais velhos que eu tiveram a felicidade de o ver no estádio da Luz, pelo Santos. Depois foi para os Estados Unidos e virou as costas à Europa, uma decisão absurda para quem tinha o Mundo aos seus pés.
Muito mais tarde, tive a sorte de o conhecer e partilhar duas horas da sua vida real, antes do Mundial de 1990, quando veio a Portugal através de uma marca que o patrocinava desde que emigrara para os Estados Unidos, trazido por um dos atuais gurus do marketing desportivo internacional, Tony Signore. Fui escolhido para fazer uma entrevista conjunta com o meu amigo José Carlos Freitas, não pelos meus méritos mas porque trabalhava então num jornal de referência como o Expresso e preparava-me para a cobertura do campeonato do Mundo em Itália.
Falámos do futebol em geral, da ausência de Portugal desse campeonato marcante, de Eusébio e do Benfica, de Vicente, do poder da selecção brasileira, então com Mozer, Valdo e Ricardo Gomes, da FIFA, do futebol nos Estados Unidos. Uma conversa de bola com o Rei da bola, partilhada nessa semana com os leitores do jornal, de forma efémera, mas alojada na minha memória para sempre, como poucas: o que os jornalistas fazem para obter as informações que passam aos leitores é o seu tesouro, o seu património secreto.

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Por vezes, desses encontros fica uma fotografia, um autógrafo, um objeto, que também raramente partilhamos, como um troféu que só a nós diz respeito. É o que eu tenho de Pelé e que mostro aqui pela primeira vez em mais de 30 anos: um autógrafo ao tamanho A4 na primeira página do 5.º volume da Enciclopédia Mundial Del Fútbol e mais uma assinatura sobre a sua fotografia na página 140, onde começa o artigo especial sobre ele.
Simbolicamente, este autógrafo imortal é a garantia de que, sendo um dos meus heróis, nunca me deixará. Há dias, descobri que tinha sido ele o inventor da “paradinha” na marcação das grandes penalidades, mais tarde proibida pela FIFA, o que me surpreendeu por nunca ter ouvido falar de um penálti à Pelé, como o “à Panenka” por exemplo. Mas hoje mesmo, horas antes da notícia brutal, chegou-me um video com cerca de 60 anos, que vale muito a pena ver, com o humorista Golias e o igualmente imortal Jô Soares, que também nos deixou neste ano, precisamente sobre o intrincado problema da “paradinha”: https://www.facebook.com/watch/?v=246914453503290
E, meu grande Edson Arantes do Nascimento, é isso aí: você não morreu, foi apenas uma “paradinha”, antes desse último golo para a eternidade.

Sou do tempo em que “Assistência” era o número de pessoas que assistiam ao jogo. Em 1986, na 3.ª Edição do “Dicionário do Futebol” da Revista Placar, esta palavra ainda não constava com o sentido actual.

No final das crónicas de imprensa, que incorporavam o que a inovadora ‘Gazeta dos Desportos’ veio a destacar como “ficha”, havia um pequeno parágrafo que rezava assim:

- Assistência: Numerosa. Ou Assistência: Regular. Ou Assistência: Fraca.

Até aos anos 80, o rigor das informações da imprensa desportiva era muito baixo e absolutamente avesso a quantificações, medições ou comparações. Tudo era feito a olhómetro e dava-se muito mais importância à qualidade da escrita do que à exactidão dos factos. 

Durante anos tentei refazer as estatísticas possíveis do futebol português “antes de mim” e esbarrei sempre nessa inexactidão das descrições. Ora falta um jogador no onze, ora os nomes surgem alterados, ora as incongruências são gritantes e deixam os investigadores na ignorância para sempre.

Portanto, até aos anos 90 do século passado, ninguém em seu perfeito juízo usaria o termo “assistência” para se referir a um passe para golo. Até Bobby Robson, que era inglês, o invocava como “pass precise”, porque o “assist” não existia no seu vocabulário de ex-jogador e treinador sexagenário.

Até que a linguagem do basquetebol norte-americano entrou nas nossas vidas com as transmissões da NBA e, em particular, nas dos estudantes de educação física e do treino que, literalmente, vieram a dar a volta ao texto futebolístico tradicional já no século XXI.

“Assist” no inglês americano é o último passe antes do cesto, embora com uma enorme carga subjectiva, sendo contabilizadas, nessas décadas do século passado, conforme a atenção e a vontade das mesas de juízes em diferentes pavilhões, porque ela era creditada ao jogador que tivesse tocado a bola antes do “shot”, independentemente de ter sido intencional ou não.

Quando entrou no futebol, nos anos da expansão televisiva nacional e europeia, houve quem lhe resistisse durante algum tempo, mas realmente a redução do complexo “passe para golo” para uma palavra única acabou passando de estranhado a entranhado. Porém, idêntica carga subjectiva também foi adiando durante anos a sua adopção pelos regulamentos dos “Fantasy Games”, antes de universalmente reconhecida e com chancela oficial.

No último Mundial, já ouvi falar em “pré-assistência”, o que nos leva para uma dimensão histriónica do linguajar futebolístico, completamente anacrónico para um jogo de erros, ressaltos, desvios e simulações sem bola, como é o futebol. A tal ponto, que nos primeiros vinte anos os números variavam consoante os meios de comunicação, obrigando as Ligas e Federações a chamarem a elas a responsabilidade final, por vezes em incompreensível choque com o que os nossos olhos viam.

Em todo o caso, o número de “assistências” veio valorizar estatisticamente uma classe de jogadores cuja actividade determinante em campo passava ao lado dos alfanuméricos da análise futebolística: deixou de haver os que se mediam apenas pelos comentários dos analistas, os construtores de jogo, e os que se valorizavam pelos números concretos dos golos marcados. 

 

* Inicio aqui um A a Z sobre a linguagem e semântica do Futebol, palavras e expressões que caíram em desuso e novos vocábulos e significados do léxico futebolístico.

 

AMANHÃ: B de Basculação

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Praticamente duas semanas após o regresso da seleção, ninguém parece conseguir dar os nós às duas pontas desatadas no Catar, dois misteriosos casos envolvendo os maiores protagonistas nacionais, subitamente relegados para o esquecimento: a substituição da FEMACOSA na Federação e o futuro desportivo de Cristiano Ronaldo.
Mas o desconhecimento em que os meios de comunicação insistem em manter-nos diz mais sobre o nível de incompetência ou, pelo menos, negligência a que chegou a imprensa desportiva, dos jornais às televisões, passando pelos rádios e pela informação digital, do que sobre esses protagonistas em concreto, cujo prestígio e experiência lhes garante o respeito e paciência de uma opinião pública sem grau de exigência.

Tudo o que se sabe, que é, em rigor, nada, vem de especulações piedosas da imprensa de Madrid que diz uma coisa e o seu contrário a cada dia, para gáudio de pivôs, comentadores e vozes do dono nos caricatos programas de "encher chouriços" que se fazem por cá.
Que balanço da participação no Mundial faz a Federação?
Como foi o acordo entre a Federação e a FEMACOSA para a rescisão do contrato hipermilionário do selecionador nacional?
Quem vai pagar os impostos colaterais que ninguém entende nos negócios da Federação com os seus prestadores de serviços técnicos?
Se José Mourinho é uma hipótese para suceder à FEMACOSA que tipo de contrato lhe está a ser proposto?
Quem são, de facto, as alternativas, para lá do catálogo de emergência de Jorge Mendes?
Quanto a Cristiano Ronaldo, podemos saber se está em Madrid, se está no Dubai, se está na Arábia Saudita?
Que fundo de veracidade existe nesta hipótese de ele se tornar embaixador desportivo da Arábia Saudita, assumindo antagonismo à candidatura de Portugal à organização do Mundial de 2030, uma traição à Federação e ao país?
Ninguém nas instâncias futebolísticas e governamentais envolvidas na candidatura tem algo a dizer sobre esta alegada escolha bizarra do seu jogador-bandeira e dos respectivos agentes e conselheiros?
A que clubes da Champions League ele foi efectivamente oferecido?
Despediu-se ou não de Fernando Santos após o Mundial?
Todas estas questões seriam relativamente fáceis de responder por jornalistas com fontes de informação, editores com liberdade de acção e sentido profissional e empresas com ética.
Isso não acontece porque o jornalismo à margem da agenda e da espuma dos dias deixou de ser possível e sobrevive dos “releases” e da pauta das agências de comunicação, dos eventos de marketing e das viagens de reportagem pagas pelos patrocinadores.

 

FOTO Record


CATARSES 3️⃣6️⃣

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Adormeci perto das 15 horas.
Só me lembro-me de ouvir alguém dizer “vamos assistir à última dança de…” e logo entrei em hibernação. Pouco depois, começava o meu sonho perfeito numa tarde cinzenta de inverno.
A voz distante dizia “última dança de Cristiano Ronaldo, a ligação Di Maria-Ronaldo” e o outro acrescentava “Falta-lhe o Santo Graal, o título de campeão do Mundo”.
Ah, finalmente percebi onde estava, nas profundezas da minha dormência. Com Portugal na final do Mundial, contra a França, era aí que eu estava? O cenário era todo em tons de azul, debatia-me no meu subconsciente contra aquela realidade virtual, mas o futebol belo e articulado, espectacular, daqueles jogadores celestes, desde o primeiro minuto, vulgarizando os convencidos dos franceses, acabou por prevalecer sobre a minha convicção: se não os podes vencer, junta-te a eles.
A nossa equipa em 4x4x2, Cristiano e Alvarez na frente de ataque. Um grande plano enche-me o lobo parietal e a voz afirma que já bateu o recorde de melhor marcador do seu país em jogos do Mundial e é a partir de hoje também o jogador com mais partidas em campeonatos do Mundo.
Os meus olhos não param, aquele futebol é um regalo para os sentidos. Os cientistas chamam-lhe sono REM (movimento rápido dos olhos) - muito mais rápido que a reação às firulas de Di Maria, à pauta de Enzo Fernandez, ao drible e passe de… Cristiano: “franceses com dificuldades tácticas perante o esquema de Scaloni”, diz a voz.
Vinte e um minutos, Di Maria na ponta esquerda dribla Dembelé e “é penalti”, grita estridente. Cristiano pega na bola, coloca-a na marca, pode concretizar o seu sexto golo e entronar-se no melhor marcador do Mundial, quarto de “penaldo".
“Siiiiiiii”.
Trinta e seis minutos, começa tudo num passe espectacular de Cristiano para Alvarez e deste para Mac Allister, que assiste para Di Maria, muito rápido, agitado a fazer-me virar para o outro lado. Acho que dei um salto no divã.
“Siiiiiiii”.
No meu embalo estou nas nuvens, sorrio a quem me explicou que sonhar “enriquece a nossa vida, torna tudo mais pleno e interessante”, o chamado “sonho acordado” em que se confundem sono e consciência.
Que jogada perfeita começou naquele toque de Cristiano. Di Maria chora, que momento emocionante! Que sonho perfeito!
“Melhor Jogador, Melhor Marcador e Campeão do Mundo”, diz a voz, sobre a silhueta de um GOAT, o maior de todos os tempos.
“Já não acontece desde Ronaldo em 2002”. No meu córtex excitado e resistente a entrar em vigília, agitam-se os neurónios com a aproximação veloz de um cometa com a forma e a imagem de Paolo Rossi.
Passou mais de uma hora, volto à grande tenda no deserto, a França só apresenta caretas e carantonhas, jogadores que saem chateados, jogadores que entram tensos, um treinador que não mostra nervos nem ansiedade.
A esvoaçar surge-me um falcão do deserto com o faccies de Piers Morgan, em versão amiga Olga da família Aveiro, a tuítar que “os franceses foram claramente envenenados”.
Mbappé a esconder-se como o “Fenómeno”, a cabeça debaixo da areia. Junta-se-me na amálgama subconsciente a imagem de brasileiros a chorar na final de 1998, pipetas, lâminas, seringas, micróbios em roda livre, uma corrida de camelos carregados de vírus.…
Viro-me de novo, luto contra o início de pesadelo. Onde estás, Cristiano? Onde estás, Cristiano, que já não te vejo aqui na tua final?
Começava a chegar ao apagão do sono em que nada se mexe, nem olhos, nem vísceras, nem membros, quando a voz dá um grito:
“Penálti!, Penálti!”
Vislumbro um antídoto na fogueira de um druida chamado Didix Deschampix, a poção mágica das substituições, a libertar Mbappé do feitiço do veneno e a relançar a França. O som sumido de “Allez les Bleus” começa a sobrepor-se, muito ao longe.
“Non, non, non!”, debato-me contra o terror de acordar do sonho.
“Se a Argentina deixar, a França pode crescer…”, diz a voz. “Rabiot, Mbappé, Thuram, Mbappé atira, goooolo! Mbappé, isto é histórico!”
Aparece-me um engravatado aos saltos, volto a 1982, vejo Sandro Pertini, o avô de todo o Mundo, a voz diz-me que se chama Macron, mas parece-me ouvi-lo dizer o mesmo que o velho italiano: “este é o meu dia mais feliz como presidente”.
Entrei outra vez em sobressalto, já não consigo distinguir quem bateu aquele remate mesmo no fim, o Lloris em voo, o jogo empatado. Eras tu, Cristiano? Pareces-me mais baixo…
Quero acordar, mas o sonho agarrou-me os sentidos. Prolonga-se.
“Siiiiiiii”.
Vejo-te regressar, Cristiano, afinal, para fazeres o 3-2 quando já ninguém esperava, és um gigante, ainda tens muito para dar: “Não chores por mim, Di Maria”.
O sonho entra num ritmo frenético, guarda-redes com asas, com quatro braços, pistões a bater na barriga das pernas dos avançados, anjos negros a esvoaçar sobre as grandes áreas, outro penálti de Mbappé, cheio de veneno, direito aos corações do valente Martinez e de todas as mamãs da Plaza de Mayo.
Um ‘hat trick’ numa final de Mundial, pela primeira vez desde 1966, está encontrado o teu sucessor como melhor jogador da Europa, quiçá do Mundo.
Que ninguém me acorde agora.
Penaltis! Como pode um Mundial ser decidido por penaltis? Anda bater, Cristiano, tu bates bem!
Como pode um jogo destes ser decidido por um tipo chamado Montiel? Só mesmo em sonhos…
São 18 horas, quando sou incomodado por um barulho contagiante de barras bravas a cantar "Muchachos, Esta Noche Me Emborracho”, ao ritmo de malacachetas como fundo de uma imagem fantasmagórica: um emir de turbante branco na cabeça a trocar sorrisos cúmplices com um capo de cabeça rapada e um baixinho tatuado vestido às riscas a ser levado em ombros com uma taça de ouro nas mãos.
Aquele som, aquela batida, cada vez mais perto, cada vez mais alto, cada vez mais nítido, a despertar-me os sentidos, ao fim de três horas de sonho…
"En Argentina nací

Tierra del Diego y Lionel…
Muchachos

Ahora nos volvimos a ilusionar

Quiero ganar la tercera

Quiero ser campeón mundial”
 
E acordei. Para a vida.
 
ILUSTRAÇÃO napoestrada
18 Dez, 2022

Sentenças do Catar

CATARSES 3️⃣5️⃣

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Frases de pessoas mais ou menos famosas que aprendi no último mês e jamais esquecerei:

 

 

 

“Este foi o melhor Mundial de sempre” 

(O autor tinha dito o mesmo há 4 anos)

 

“A verdadeira história de Portugal no Mundial está por contar”

“Vamos fazer como Afonso Henriques fez e mandar os mouros embora”

“Um grupo demasiado unido para ser quebrado por forças externas”

“Jogadores estão fartos de Cristiano Ronaldo”

“Esqueçamos os direitos humanos no Qatar e concentremo-nos na equipa”

“A minha solução é a mais inteligente, mas não estou certo que vá ser a escolhida”

“Abertura vertical para as entrelinhas, num 4x4x2 em vértice”

“O que pensa dos Estados Unidos que abandonaram o Afeganistão e todas as mulheres lá?

“Metamorfose da transição ofensiva em ataque rápido”

“Cá’tá… lá está”

“Disse-lhes que tinham de chegar ao Catar com pelo menos 1000 penáltis cobrados. Imagino que tenham feito os trabalhos de casa”

“Marrocos tem uma crença incrível”

"Holanda de 74, que na altura ainda não eram Países Baixos"

"Foi uma derrota dolorosa, mas saio em paz”

“O tiki-taka é como comida de hospital”

“Portugal vai ser duro de bater sem Cristiano Ronaldo”

“"Vou dizer o que tenho a dizer. Eles que se f... depois”

“Messi pode jogar até aos 50 anos”

“José Mourinho, inventor do conceito do parque do autocarro”

"Polémica entre Fernando Santos e Ronaldo é boa para encher chouriços"

“Demissão não faz parte do meu léxico, nem do presidente”

«Mataram o Homem. Mataram a Seleção. Mataram uma nação!»

“Recorde de Eusébio por um cabelo”

“Vírus do camelo”

 “Qué miras, bobo?”

“Quanto me pagas para eu responder a essa pergunta?”

 

 

FOTO The Philadelphia Inquirer

CATARSES 3️⃣4️⃣

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Pepe foi o primeiro jogador a manifestar solidariedade e reconhecimento por Fernando Santos, minutos depois de anunciado o despedimento do seleccionador, no que foi seguido por quase todos os colegas da seleção, alguns dos quais nem sequer estiveram no Mundial.

Pepe esteve à altura do posto que assumiu, ainda que interinamente, com dignidade e responsabilidade, quando necessário, no Catar.

Podemos nem saber que um capitão se situa normalmente entre tenente e major, sendo por isso da categoria dos oficiais intermediários, abaixo dos oficiais superiores, mas a nenhum outro reconhecemos a força e o poder da liderança, comando e incumbência. Porque a sua matriz, o latim “caput”, significa precisamente “cabeça” e evoluiu semanticamente na Idade Média para “chefe” ou, mesmo, “comandante”.

Temos pelo “capitão” maior identidade e confiança do que pelo “general” ou pelo “almirante”, sabemos que ele é a reserva do bem, que não se deixa possuir pelo autoritarismo, que não falha quando os outros se escondem, que é o último a abandonar o navio que se afunda. 

Capitão é Abril, é verdade, coragem e dádiva, é a “nossa bandeira”, como diz Pepe - é um de nós.

Ora, todas as equipas de futebol devem ter um capitão, embora a única função prevista nas leis do jogo, Lei 3, seja a participação representativa no acto da escolha de campo, prévio ao jogo, e a recepção do troféu ganho, após a partida. O homem da braçadeira responde pelo comportamento do conjunto em campo: “o capitão não tem estatuto especial nem privilégios, mas assume um grau de responsabilidade pelo comportamento da equipa” - determina o International Board.

É precisamente no seio do grupo que ele desempenha, por missão e carisma, esse papel natural de  liderança, muitas vezes erradamente confundida com antiguidade, como acontece por tradição e defeito na seleção de Portugal. 

Nos primórdios do futebol, era o primeiro ajudante do treinador, inclusive na escolha dos jogadores: uma equipa podia nem ter treinador, mas tinha sempre capitão. Aliás, da história das grandes competições, recordamos mais capitães do que treinadores. 

Sabemos, até à eternidade, quem estava lá, na tribuna a receber a taça das mãos dos dignitários, mas já se nos varreu da memória quem era o técnico desse triunfo: como o “capita” brasileiro Carlos Alberto, superior hierárquico de Pelé, ou Bobby Moore, o príncipe inglês no reinado de Bobby Charlton, Daniel Passarella como referência de Kempes, Lothar Matthäus a equilibrar Völler e Klinsmann, Didier Deschamps na sombra de Zidane, Iker Casillas a dar dimensão nacional aos génios catalães, o Cafu vulgar como tutor do fenómeno Ronaldo. E tantos outros.

O capitão não tem de ser forçosamente o dono da bola, o melhor ou mais famoso e influente jogador, o que marca mais golos ou estabelece mais recordes. O capitão é aquele que dá a cara pelo colectivo nos bons e sobretudo nos mais difíceis momentos. É o líder firme, a cabeça do grupo, que pensa, que enfrenta, que decide, que assume, que se faz ouvir, que se deixa seguir pelo exemplo.

Os melhores anos de Eusébio foram os tempos de Mário Coluna, o “grande capitão” a quem ele tratava por “senhor”, quando o prestígio e o respeito eram superiores hierárquicos da celebridade e do mediatismo.

A nova seleção de Portugal, além de um novo selecionador, também precisa de um novo capitão.

“O Captain! my Captain! our fearful trip is done;

My Captain does not answer, his lips are pale and still;

The ship is anchored safe and sound, its voyage closed and done”

 

FOTO Infocul

CATARSES 3️⃣3️⃣

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Chega ao fim o mais controverso campeonato do Mundo de sempre. 

Disputado num país anacrónico em que o principal desporto é a corrida de camelos. 

Disputado num país onde o dinheiro se sobrepõe a qualquer valor humano por direito. 

Disputado graças a uma teia de corrupção à escala planetária, dos pratos de migalhas para os dirigentes do futebol aos contentores de euros para os políticos de Bruxelas. 

Disputado pela primeira vez no meio de uma época desportiva sem respeito pelos jogadores, cujo esforço extraordinário vai certamente prejudicar as performances das equipas no segundo semestre, e, portanto, sem respeito pela saúde da própria indústria do futebol, mantida pelos clubes e pelas ligas e não pela FIFA.

Disputado em estádios faraónicos, autênticas necrópoles de trabalhadores inocentes, doravante condenados a uma vida de elefantes brancos, sem préstimo nem justificação, num país onde a média de espectadores é inferior a mil pessoas por jogo na principal liga.

Disputado num ambiente artificial de festa ecuménica, paredes meias com a repressão ideológica e religiosa que condena à morte filiados do futebol só porque defendem direitos básicos das mulheres.

Do Mundial do Catar, talvez o pior de sempre, salvaram-se os profissionais, os treinadores e os jogadores, que alguém uma vez disse, profeticamente, que são o “melhor do futebol”. Apesar do péssimo nível das arbitragens, sacrificado pela necessidade de satisfazer as clientelas regionais da FIFA.

Os jogadores deram tudo em situações adversas, para satisfazer os caprichos dos novos césares nas tribunas e para gáudio das galerias acéfalas, como na Roma do poeta Juvenal, inconformado com a hipócrita política social de distribuição gratuita de comida e acesso aos jogos dos coliseus: “pane et circenses”.

Milenar contradição essa do filósofo romano também autor da expressão “Mens sana in corpore sano”, que alguns atribuem a uma Grécia olímpica onde não se escrevia em latim, de usar a saúde dos atletas para manipular as vontades dos povos: “o único caminho de uma vida tranquila passa pela virtude”, escreveu Juvenal na sua Sátira X.

É óbvio que os dirigentes do futebol mundial não seguem os Clássicos. 

O próximo Mundial, em 2026 na América do Norte, será expandido de 32 para 48 selecções, o que significa que um em cada quatro países será finalista. Foi a solução proposta por Platini, primeiro, e agora por Infantino para distribuir o mal pelas aldeias, assegurando a reeleição pelo voto dos pequenos países, mas vulgarizando a um nível infra-competitivo o que era supostamente entendido como o máximo desafio deste desporto.

E porquê?

Porque a nova fórmula expandirá a competição de 64 para 80 jogos, concentrados no mesmo número de dias, quase um milagre da multiplicação, dos pãezinhos e dos circos, à razão de 120 milhões de euros por cada jogo a mais - que é o valor estimado das receitas de cada partida do Mundial para a FIFA, que, tudo somado, em 2026 deverão rondar os dez mil milhões de euros.

Ou, quem sabe, para a monstruosidade de 104 jogos em 32 dias, como a FIFA estuda agora, em função do “sucesso” do Catar, em cima de um Mundial de clubes completamente insano.

Indiferente aos avisos de sábios como Joachim Löw, para quem os “jogadores já atingiram os limites físico e mental”, e à oposição formal da Associação Europeia de Clubes, que considera inaceitável o actual calendário - Mundial é quando, como e onde Infantino quiser.

 

FOTO NY Times

CATARSES 3️⃣2️⃣

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O fim de Fernando Santos, o nosso “el Greco”, à frente da seleção portuguesa, é o epílogo de uma tragédia de final anunciado, um borrão para quem a maior dificuldade da arte foi sempre atingir a perfeita harmonia plástica através da paleta futebolística à sua disposição.

E talvez o leve de volta ao Partenon e ao encontro dos “parakaló” calorosos de quem mais gostou dele, a Grécia, tão mais grata e influente na sua vida de treinador de futebol.

Enquanto esperamos pelas explicações e justificações dos outros protagonistas desta história -  sobretudo Cristiano Ronaldo e Fernando Gomes, bem menos assertivos do que o achista Marcelo Rebelo de Sousa, que o comentou em direto nas televisões 32 minutos antes do anúncio formal da Federação -, situemos a ação dramática nessa pátria da filosofia e da compreensão humana. 

E cada um dos “hipokrytes” (intérpretes) nos perfis dos três pais da tragédia grega - que foi o primeiro grande espectáculo de massas, para mais de 15 mil pessoas, no anfiteatro de Dionisio, o estádio panatenaico do teatro.

Fernando Santos podia ser um Ésquilo, encenador do enredo, muito estrito na sua crença e estética teológica, em obediência à moral do destino e à ortodoxia do trabalho: “Deus ajuda aqueles que se esforçam”.

Em Cristiano Ronaldo vejo um Sófocles, artista ufano de dezenas de vitórias nos campeonatos dramáticos, introduzindo a influência do “coro” como pressão externa para sublinhar o conflito em palco, sempre à procura de roubar o protagonismo, no limiar dos caprichos divinais: “nenhum inimigo é pior do que um mau conselho”.

E, finalmente, um Fernando Gomes como Euripides, privilegiando o realismo e desconsiderando a irracionalidade dos deuses, tendo introduzido em palco a bombástica “deus ex-machina” para detonar a explosão final perante o impasse da história: “questiona tudo, entende o principal e nada respondas”.

Três frentes de uma guerra surda, que escondem motivações e estratégias, atrás de declarações formais e estereotipadas, com menos respeito pelos espectadores, de acordo com outro axioma de Ésquilo segundo o qual “na guerra, a primeira vítima é a verdade”.

Foi do pensamento de qualquer um destes dramaturgos originais, que retiramos orientações à medida das equipas de futebol conquistadoras, organizadas e determinadas, tão básicos princípios como “a felicidade exige esforço” ou “a obediência é a mãe do sucesso”. 

As tragédias gregas também se compunham de três partes distintas como a vida de uma equipa de futebol, acabando invariavelmente na desgraça ou na redenção dos protagonistas: 

  • Prólogo: a fase de conhecimento e apresentação em que se desenham os objetivos; 
  • Episódios: os jogos e peripécias dos protagonistas que incluem os comentários, as interpretações e as interpelações dos jornalistas (coro);
  • Êxodo: o final dramático e marcante em que o herói recebe a sentença divina.

Uma seleção nacional de futebol emula as famílias nobres em que se desenrolavam as tragédias que apaixonavam os gregos. Formadas por seres humanos que, pela sua posição social e actividade profissional, se colocam em pedestais e palcos de enorme exposição à crítica, nem sempre pelas melhores razões.

Uma grande parte dos enredos dramáticos eram atenuados por finais cómicos ou, pelo menos, surpreendentes do ponto de vista cénico para atenuarem a carga dramática da trama que, normalmente, mexia com a justiça e a coerência dos deuses. Desfechos de reconciliação ou de castigo, mas definitivos para a vítima, perante a necessidade de mexer em alguma coisa para que, certamente, tudo fique na mesma.

E agora, como diria Fernando Santos, no seu grego moderno: “Antío kai efcharistó”

Adeus e obrigado.

 

FOTO FPF

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