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J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

J Q M

Fui jornalista, estive em todo o tipo de competições desportivas ao longo de mais de 30 anos e realizei o sonho de participar nos Jogos Olímpicos. Agora, continuo a observar o Desporto e conto histórias.

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Chefe Schmidt serve agora como prato principal na sua ementa vitoriosa um saboroso e bem temperado bacalhau com todos.
Florentino é a batata espessa e nutritiva.
Enzo Fernandez, a couve farfalhuda e omnipresente.
João Mário, a cenoura, doce e vitaminada.
David Neres, o bolbo suculento de múltiplas camadas, melhor que cebolinha.
Gonçalo Ramos, o ovo cozido destacado no seu devido lugar, como o de Colombo.
Rafa, o azeite e vinagre que faz a cama aos outros e escorre por toda a travessa.
E, claro, o bom do Aursnes, o bacalhau que ajuda a que todos os jogos sejam Natal à mesa dos benfiquistas.
Dirigir uma equipa de futebol pode parecer tão simples como atirar o bacalhau e os seus amigos para dentro da panela e deixá-los cozer, mas o que esta posta alta, pescada na Noruega e salgada na Holanda, veio trazer aos manjares do Benfica é uma degustação “gourmet”, por módicos 13 milhões de euros, só se consegue após muito tempo a demolhar - um toque nórdico de fusão com paladares lusos, argentinos e brasileiros, digno de cinco estrelas Michelin.
Talvez por ter sido capturado em águas menos frias, bem adaptado ao futebol fluido e prático dos holandeses, Fredrik Aursnes entrou na equipa do Benfica como um “fiel amigo” já provado há longa data, de gosto tradicional, que não precisa ser em grande quantidade para fazer sentir o aroma e o carácter a cada garfada, que não enche o campo como Enzo ou João Mário, mas que se sente ou pressente por todo o lado.
O norueguês, sozinho, é a rotação de Roger Schmidt. Dá com Florentino no meio. Dá com Enzo na contenção. Dá com João Mário como ala. Acho que dará como central ou lateral, se necessário. Ainda não marcou, mas conclui muito bem.
Aursnes do Benfica liga com todos, como o bacalhau graúdo, gostoso e popular.
 
FOTO record.pt

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Na primavera de 1980, meses após a Revolução Iraniana, fui a Liège cobrir uma Taça dos Campeões Europeus de Corta-Mato, do Sporting de Moniz Pereira, com Lopes, Mamede e Aldegalega, e numa das noites saí com Luís Norton de Matos, um dos primeiros emigrantes do nosso futebol, que então jogava no Standard, e com o meu camarada de muitas reportagens João Alves da Costa, de “A Bola”.
“Sabem quem é aquele ali?”, perguntou o Luís, apontando para um jovem de tez morena que dançava na pista. “É sobrinho do Xá da Pérsia e estuda aqui na Universidade”. O repórter João parecia ter molas, saltou para a pista de perguntas em riste, pronto para um “world exclusive” numa altura em que era ainda misterioso o destino da família de Reza Pahlevi - o que gerou um pequeno burburinho na discoteca belga e uma intervenção discreta, mas musculada, da segurança pessoal com o imediato desaparecimento da celebridade pela porta dos fundos.
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No Mundial de 1998, assisti em Lyon ao histórico jogo da reconciliação entre Irão e Estados Unidos. A meio da primeira parte, alguém me toca no braço e me entrega um papelinho com um pedido “Look to your right” (“Olhe para a direita”). Atrás de uma das balizas, a Resistência iraniana desembrulhava um grande cartaz cujo conteúdo de protesto político mal tivemos tempo de ler, por tão rápido e implacável ter sido o silenciador da FIFA: letreiro e activistas varridos em segundos das bancadas do stade Gerland.
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Nestes meus dois fugazes contactos de primeiro grau com a vida real iraniana, fundamento a compreensão para a tristeza visível de Mehdi Taremi, muito contido na celebração de golos e vitórias. Ele estaria enviando a Teerão uma mensagem de luto contra o obscurantismo, a intolerância e o terror político, religioso e social que oprimem e assassinam o povo persa há décadas, desafiando perigosamente a lei medieval vigente: quem se mete com o Irão leva.
Num dos melhores momentos da carreira, num trajecto que pode elevá-lo a melhor futebolista asiático deste ano, assim o Mundial lhe corra de feição, Taremi justifica toda a solidariedade ao seu protesto passivo, a par de outros destacados elementos da seleção iraniana, como Azmoun, contra a repressão sanguinária em curso no país - uma atitude que lhe pode custar muito caro.
O sacrifício de heróis populares em nome da “estabilidade” e da “segurança”, como quem ceifa as flores selvagens que teimam em nascer no deserto, é um clássico dos regimes totalitários. É precisa uma coragem fora do comum para afrontar o Estado Islâmico, cujos tentáculos não se confinam ao Irão e lançam “fatwas”, as maldições que podem perseguir alguém para o resto da vida, apenas por ousar pensar diferente. Por isso, aguardo com apreensão as próximas semanas da seleção dirigida por Carlos Queiroz e a clarificação da posição dos jogadores, porque a pressão internacional vai ser tremenda.
Entretanto, o melhor da semana da Liga dos Campeões marca golos, joga e faz jogar, lidera em campo e fora e já enfileira na galeria azul e branca de honra, com todos os predicados e defeitos, tendo projectado o FC Porto para um nível de popularidade como nenhum outro clube nacional alcançou antes, num dos maiores países do Mundo, quer na dimensão, quer no curtíssimo período. Tudo o que ele faz por cá produz efeito em 90 milhões de compatriotas.
Os adversários censuram-lhe a manha dos penáltis, o que também constitui uma forma muito expressiva de admiração e reverência. Ele é transparente no que faz, de bom e de “mal” - se gostam, gostam, se não gostam, ficam a perder.
Quando o mundo foi amedrontado por uma organização terrorista apoiada e protegida pelo Irão, deduzi que a palavra “al-qaeda” terá inspirado, muitos séculos antes, o nome de uma das simpáticas aldeias mouriscas das minhas origens (Alqueidão da Serra), porque apenas significa “A Base” (ou sopé da serra de Aire) e porque a honra de um povo (ou de um clube) não deve ser confundida com a degenerescência de alguns dos seus membros.
“Al-qaeda” pode inspirar-nos terror, mas não passa de uma palavra inofensiva e que merece ser libertada da maldição satânica. Mal comparado, também Mehdi Taremi se assume como ponta-de-lança de um “alqueidão” do Bem, cavando os alicerces para o triunfo da paz e da liberdade, as bases de uma harmonia social duradoura, sem perseguições nem repressões, digna de uma cultura que foi o berço da Humanidade.
Uma imensa “al-qaeda” que deseja ver Taremi dançar como o sobrinho do Xá sem ser perturbado pelos polícias da religião. E ouvi-lo exprimir-se no Mundial sem medo de ser silenciado pelos esbirros dos “ayatollah”.
 
FOTO Getty@zerozero.pt


Na minha família os Silva terminaram na geração do meu pai e eu acho que todos os portugueses têm Silva no sangue. Portugueses e não só, na semana em que atribuímos o Prémio Camões a um brasileiro chamado Silviano.



Esta familiaridade pode ser uma explicação para a empatia fácil e espontânea que tem gerado o jovem central, desconhecido há dois meses, com nome de herói de um qualquer pátio de cantigas benfiquistas e que hoje ocupa o topo das listas de “wannabes” do futebol europeu e tão bom, tão bom, que é o único jogador mundial com coluna para os “erros” na sua ficha estatística atualizada.

Além de familiar, Silva é um sobrenome de tal maneira vulgar que se subentende. Temos o Raphael Guerreiro, o Rafael Leão e o simplesmente Rafa - o futebolista que corre com a bola colada ao pé, mais veloz do que a própria sombra, mais rápido do que nenhum outro neste desporto.

António Silva e Rafael Silva, o Rafa do Benfica, não se cruzam na mesma árvore genealógica, mas nasceram ambos dessa inesgotável e ilimitada silveira de talentos portugueses para o futebol.

São herdeiros do Rei Eusébio, são primos do Bernardo. Que linhagem extraordinária, de Mafalala a Viseu, que orgulho sentiria hoje Alberto Silveira, um dos maiores benfiquistas que conheci!

Ontem, para decretar a Juventus como a “pior Juventus dos últimos dez anos (pelo menos)”, a Companhia Silva & Silva foi a firma de uma das mais extraordinárias performances futebolísticas de uma equipa portuguesa na Liga dos Campeões moderna. Um jogo inesquecível, óptimo em todos os sentidos e ângulos, barómetro de poderes e de ambições e, até, revelador de uma fraqueza do treinador Roger Schmidt - podemos considerar que os Schmidt são os Silva da Germânia -, que muitos já consideravam infalível.

Deslumbrado com o esplendor dos Silva vermelhos, o alemão não reparou na via verde que sempre se abre no lado direito da defesa a meio do segundo tempo e que foi habilmente explorada pelo treinador Allegri para afogar parte das tristezas juventinas com dois golos que apagaram, injustamente, o efeito de uma goleada que seria histórica.

Ora, se Schmidt é, afinal de contas, apenas humano, também não sei a que dotes de prestidigitação terá de recorrer para acomodar na mesma formação a harmonia e disciplina do bando dos quatro (Florentino, Enzo Fernandez, João Mário e Aursnes) com os improvisos de um aventureiro como David Neres. Dumas resolveu o quebra-cabeças cedendo à evidência de assumir que os Três Mosqueteiros, afinal, eram quatro.

É este agora o desafio do romancista do Benfica para os próximos capítulos do seu folhetim. No balanço das primeiras conquistas, uma equipa que parecia só ter onze elementos credenciados dispõe agora de “sobras” de reforço que podem fazer ainda mais diferença, por exemplo, com o restabelecimento dos outros três guardas reais que estavam de baixa - uma fartura que acaba com o apertar dos cintos das primeiras semanas.

E, porque isto anda tudo ligado, como diria o meu amigo Bandarra, um deles chama-se Lucas Veríssimo da Silva, outro é o João Vítor da Silva Marcelino e o terceiro o Filipe Rodrigues da Silva “Morato”.

 



FOTO slbenfica.pt

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O primeiro jogador de futebol que detestei, pelo que fez a Eusébio nos confrontos do Mundial de 1966 e da Taça dos Campeões, chamava-se Nobby Stiles: tinha perdido os incisivos num choque violento e jogava sem eles para acentuar o padrão de defesa carniceiro, um adjectivo aceitável na linguagem futebolística de há 50 anos. Na realidade, Stiles era muito bom, um dos 100 maiores da história do futebol inglês do século XX, e uma pessoa afectuosa, a quem Gary Lineker fez um memorável epitáfio: “tinha um coração muito maior do que o espaço em vão na sua dentadura”.
Detestado pelos portugueses e pelos benfiquistas, era adorado pelos adeptos do Manchester United e da selecção inglesa. Nobby Stiles é a figura que sempre me ocorre quando me deparo com esse dilema intricado de reconhecer o mérito, às vezes até a excelência, de jogadores entre o sublime e o miserável, com talento mas sem ética desportiva.
Como Otávio, o líder atual do FC Porto, adorado pelos portistas e detestado pelos outros portugueses, quando se aproxima a lista final da FEMACOSA para o Mundial do Catar.
Há um bom par de anos, quando tinha o privilégio de falar de futebol regularmente num canal de televisão, despontava o então jovem brasileiro no Vitória, por empréstimo do Porto, vaticinei que poderia chegar à selecção brasileira - heresia que arrancou gargalhadas aos outros comentadores de circunstância, entre eles um amigo portista.
É verdade que Otávio não chegou ao “escrete” devido à baixa visibilidade internacional do seu clube, mas ganhou o direito a alinhar por Portugal, depois de ter obtido a cidadania. Porque, como português, é realmente um dos melhores futebolistas da actualidade, o mais bem pago de sempre e uma figura central do campeonato, umas vezes magnífico, outras canalha, um pequeno tirano digno do nome original do fundador do Império Romano.
Tal como o filho adoptivo de César, este Otávio adoptado pela cúria portista singrou na vida como um legionário indomável, sanguinário com os adversários, seguido sem reservas pelas suas falanges, à conquista de batalhas e alargando horizontes futebolísticos como o outro, há dois mil anos, anexava povos e territórios, da Lusitânia ao resto do Mundo.
Ao mudar de nacionalidade, Otávio também imitou o imperador que mudou de nome, chamando-se a si mesmo de Augusto, para ocupar um lugar distinto na História. Mas é neste ponto que divergem: o Otávio luso-brasileiro nunca será augusto, muito menos alargará a sua influência de forma majestosa e venerada.
Pelo contrário, é fácil antever que a sua nomeação para o Mundial do Catar será fracturante e repudiada por uma larga faixa de adeptos, talvez a maioria, atirando para cima da equipa ainda mais polémica e desconcentração.
Em contraste com Nobby Stiles, na nossa selecção, Otávio seguramente arreganhará os dentes, mas sem sentimento no coração.
 
FOTO maisfutebol.pt

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Roger Schmidt venceu o seu primeiro clássico em Portugal, contra o adversário mais forte do ano, sem deixar perceber uma centelha de nervos ou um esgar de ansiedade, sempre na sua pose seráfica, atenta, esclarecida e, arrisco dizer, superior.
Não faz parte das listas que têm saído nas últimas semanas com os melhores treinadores mundiais, em que figura Sérgio Conceição, mas este jogo vai confirmar uma diferença enorme de, digamos, estilo, que acaba por refletir-se no que a equipa vai fazendo em campo. A calma do treinador, confiante nas capacidades e na preparação, permite à equipa esplanar-se, errar, recuperar, voltar a errar, insistir, até acabar por vingar. E somar triunfos.
O Benfica ficou “carregado” de cartões amarelos muito cedo, devido a sucessivos erros no começo da elaboração ofensiva que obrigaram a faltas cirúrgicas em recuperação. Ninguém viu o treinador aos saltos, invectivando árbitros e jogadores, como é apanágio dos grandes treinadores nacionais. Schmidt limitou-se a observar, a dar-se por satisfeito por Bah não ver também um segundo amarelo e fez o seu trabalho ao intervalo, lá no segredo do seu espaço de eleição, o balneário.
Que tratados de futebol deve leccionar nesse recato, para ter conseguido transformar tão radicalmente uma equipa que estava moribunda há seis meses!
À evidente necessidade de substituir Bah, o treinador alemão juntou João Mário e Enzo Fernandez. Três mudanças ao intervalo, compreensíveis, mas surpreendentes, de quem tem uma confiança ilimitada numa equipa que nem dispõe de um “banco” à altura, salvando o colectivo através do sacrifício de dois dos seus principais jogadores. Notável e para mais tarde recordar, como um dos momentos-chave deste campeonato.
Três substituições ao intervalo já vi fazer por treinadores agastados com más exibições, normalmente de cabeça perdida. Nunca numa equipa que já estava claramente por cima do jogo. Para lá da frescura que adicionou, baralhou os adversários que viriam, certamente, determinados a provocar pelo menos uma expulsão de um daqueles jogadores expostos ao risco.
"De uma forma limpa”, como diz o outro, Roger Schmidt pode estar muito orgulhoso da sua qualidade, competência e coragem, os atributos que distinguem os “melhores”.
 
FOTO Lusa