“Sabem quem é aquele ali?”, perguntou o Luís, apontando para um jovem de tez morena que dançava na pista. “É sobrinho do Xá da Pérsia e estuda aqui na Universidade”. O repórter João parecia ter molas, saltou para a pista de perguntas em riste, pronto para um “world exclusive” numa altura em que era ainda misterioso o destino da família de Reza Pahlevi - o que gerou um pequeno burburinho na discoteca belga e uma intervenção discreta, mas musculada, da segurança pessoal com o imediato desaparecimento da celebridade pela porta dos fundos.
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No Mundial de 1998, assisti em Lyon ao histórico jogo da reconciliação entre Irão e Estados Unidos. A meio da primeira parte, alguém me toca no braço e me entrega um papelinho com um pedido “Look to your right” (“Olhe para a direita”). Atrás de uma das balizas, a Resistência iraniana desembrulhava um grande cartaz cujo conteúdo de protesto político mal tivemos tempo de ler, por tão rápido e implacável ter sido o silenciador da FIFA: letreiro e activistas varridos em segundos das bancadas do stade Gerland.
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Nestes meus dois fugazes contactos de primeiro grau com a vida real iraniana, fundamento a compreensão para a tristeza visível de Mehdi Taremi, muito contido na celebração de golos e vitórias. Ele estaria enviando a Teerão uma mensagem de luto contra o obscurantismo, a intolerância e o terror político, religioso e social que oprimem e assassinam o povo persa há décadas, desafiando perigosamente a lei medieval vigente: quem se mete com o Irão leva.
Num dos melhores momentos da carreira, num trajecto que pode elevá-lo a melhor futebolista asiático deste ano, assim o Mundial lhe corra de feição, Taremi justifica toda a solidariedade ao seu protesto passivo, a par de outros destacados elementos da seleção iraniana, como Azmoun, contra a repressão sanguinária em curso no país - uma atitude que lhe pode custar muito caro.
O sacrifício de heróis populares em nome da “estabilidade” e da “segurança”, como quem ceifa as flores selvagens que teimam em nascer no deserto, é um clássico dos regimes totalitários. É precisa uma coragem fora do comum para afrontar o Estado Islâmico, cujos tentáculos não se confinam ao Irão e lançam “fatwas”, as maldições que podem perseguir alguém para o resto da vida, apenas por ousar pensar diferente. Por isso, aguardo com apreensão as próximas semanas da seleção dirigida por Carlos Queiroz e a clarificação da posição dos jogadores, porque a pressão internacional vai ser tremenda.
Entretanto, o melhor da semana da Liga dos Campeões marca golos, joga e faz jogar, lidera em campo e fora e já enfileira na galeria azul e branca de honra, com todos os predicados e defeitos, tendo projectado o FC Porto para um nível de popularidade como nenhum outro clube nacional alcançou antes, num dos maiores países do Mundo, quer na dimensão, quer no curtíssimo período. Tudo o que ele faz por cá produz efeito em 90 milhões de compatriotas.
Os adversários censuram-lhe a manha dos penáltis, o que também constitui uma forma muito expressiva de admiração e reverência. Ele é transparente no que faz, de bom e de “mal” - se gostam, gostam, se não gostam, ficam a perder.
Quando o mundo foi amedrontado por uma organização terrorista apoiada e protegida pelo Irão, deduzi que a palavra “al-qaeda” terá inspirado, muitos séculos antes, o nome de uma das simpáticas aldeias mouriscas das minhas origens (Alqueidão da Serra), porque apenas significa “A Base” (ou sopé da serra de Aire) e porque a honra de um povo (ou de um clube) não deve ser confundida com a degenerescência de alguns dos seus membros.
“Al-qaeda” pode inspirar-nos terror, mas não passa de uma palavra inofensiva e que merece ser libertada da maldição satânica. Mal comparado, também Mehdi Taremi se assume como ponta-de-lança de um “alqueidão” do Bem, cavando os alicerces para o triunfo da paz e da liberdade, as bases de uma harmonia social duradoura, sem perseguições nem repressões, digna de uma cultura que foi o berço da Humanidade.
Uma imensa “al-qaeda” que deseja ver Taremi dançar como o sobrinho do Xá sem ser perturbado pelos polícias da religião. E ouvi-lo exprimir-se no Mundial sem medo de ser silenciado pelos esbirros dos “ayatollah”.